Ontem uma maçã
RICARDO CARRANZA
Ontem uma maçã.
As luzes apagavam da cidade
blocos insípidos que abrigam
pessoas como eu e você. O frenesi,
pré-agendado, principiava a se enrolar
com o focinho embebido no ventre.
Do véu de luz no talho da pedra se
espreitava um suspiro de dor,
tédio ou volúpia; não sei dizer.
O tempo passou, insidioso, pela alma
do meu esqueleto. De volta, a maçã ainda
oxidava como ampulheta de carne no tampo
de vidro temperado. Então você veio e disse
que é fácil dizer que a maçã vem da árvore e a árvore vem da semente da maçã
e que isso não causa mais vertigem a ninguém.
Mas não. Não é só isso, você insiste.
É isso mesmo, digo eu.
Disse e caminhou até a janela.
Cada um de nós tem o hábito de caminhar, como forma de ganhar fôlego, até a janela e
dar uma olhada à brecha do inominável.
Como escavar todo o caldo derramado?
Como traçar um projeto? Então inventamos
um joguinho: Totem ou Vênus –
como um nome para o miolo da fruta.
E chamamos Elza para desempatar. Ela veio,
apressada, enxugando as mãos no avental.
Eleita Vênus Putrefata, o quê valorizamos
acima de tudo? – pensamos quase ao mesmo tempo.
Nunca saberemos. O certo é que a nossa Vênus
devorada não escaparia à faxina, seja o que for,
irrevogável, do fim de semana, véspera do amanhã.
Como citar:
CARRANZA, Ricardo. Ontem uma maça. 5% Arquitetura + Arte, São Paulo, ano 15, v. 01, n.19, e143, p. 1-3, jun./jun./2020. Disponível em: http://revista5.arquitetonica.com/index.php/poesia/ontem-uma-maca
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