MAIO DE 68: cultura e contracultura
EDITE GALOTE CARRANZA
Introdução
O estopim do Maio de 68 foi um episódio de desentendimento entre estudantes de Letras e a Universidade de Nanterre, cujo motivo seria a norma que proibiu a presença masculina nos alojamentos femininos. Depois, os estudantes “furiosos” ocuparam o prédio da administração da Universidade. Liderados por Daniel Cohn-Bendit - Dany (o vermelho), o episódio ficou conhecido como “22 de março”, um protesto de grandes proporções que paralisou a França.
Os estudantes com seu lema “é proibido proibir” tinham como principais reivindicações: igualitarismo, reformas nas instituições e liberdade. Cohn-Bendit, alemão descendente de judeus, que foi definido como “uma figura ao mesmo tempo meta-anarquista e meta-marxista” se tornou conhecido em todo pais quando, no auge dos acontecimentos, esteve na Alemanha e foi proibido de voltar à França, motivando uma passeata em Paris com trinta mil pessoas gritando: “todos nós somos judeus-alemães”. O governo francês cede e Cohn-Bendit retorna à França, deixando o então Primeiro-Ministro Georges Pompidou numa situação muito delicada por ter autorizado seu regresso ii.
A revolta estudantil adquiriu vulto a partir do apoio de professores, artistas como o pintor Picasso e o escultor Calder, jornalistas, sindicatos dos trabalhadores de fábricas, além de cineastas que interromperam a realização do Festival de Cannes iii . Em 10 de maio ocorre a “noite das barricadas” quando vinte mil estudantes enfrentam a polícia utilizando o calçamento das ruas de Paris como arma; nesta noite 1960 carros são incendiados. Em 13 de maio os trabalhadores decretam greve geral de 24h. A França para. Em 30 de maio o presidente Charles De Gaulle dissolve a Assembleia Nacional e convoca eleições gerais. Em junho tudo volta à normalidade e De Gaulle consegue firmar o triunfo de direita nas eleições vi.
Maio de 68 se tornou um movimento sem precedentes: 1 milhão de estudantes envolvidos; 10 milhões de trabalhadores grevistas; bancos fechados, ocupações em trezentas fábricas; ocupações em centrais elétricas e de gás; enfrentamentos, passeatas e barricadas pelas ruas; lixo acumulado por toda parte; o Teatro Odeon ocupado para as assembleias estudantis; e a Universidade de Sorbone fechada por um mês e meio . Apesar da magnitude dos eventos, não “foi disparado um único tiro no curso de todo o movimento e nem houve nenhuma vítima fatal v".
O Maio de 68 França foi o marco simbólico da Revolução cultural e contracultural dos anos 1960 nos países ocidentais - EUA, México, Japão, Itália, Alemanha, Checoslováquia e Brasil - pois foi o que teve maior repercussão e caráter mais complexo, adquirindo diversas interpretações no tempo como veremos.
Maio de 68: interpretações
Os filósofos e professores Luc Ferry e Alain Renaut, no livro “Pensamento 68”, analisam as principais linhas de pensamento da “geração filosófica” formada por autores franceses como: M. Foucault, L.Althusser, J. Derrida, J.Lacan, P.Bourdieu, G. Deleuze, J.F. Lyotard, autores que se “reconheceram, quase sempre explicitamente, um parentesco de inspiração com o movimento” vi e cujas obras foram contemporâneas ao Maio 68, e tinham como objetivo desvelar a complexidade daquele movimento. As interpretações foram diversas relacionadas em grupo de teses, a saber:
- Maio como complô: é a tese da tentativa de subversão (seja por grupos esquerdistas, seja pelo PC, que os teria manobrado sem que eles se apercebessem) desenvolvida naquele momento por De Gaulle ou po G. Pompidou [...]
- Maio 68 como crise da Universidade: põe-se em questão então a rigidez da antiga Universidade, suas dificuldades em se adaptar às exigências novas de um ensino superior ‘de massa’, sua resistência ‘burocrática’ às mudanças[...]
- Maio como acesso de febre ou como revolta da juventude: lida de forma positiva, a revolta é percebida como a irrupção do jogo ou da festa no cotidiano ou, ainda, como o ‘assassinato do pai’ – uma espécie de 1789 sócio-juvenil que realizou a irrupção da juventude como força político-social; lida de forma crítica, a revolta tornou-se ‘psicodrama’, mímica ou paródia mais ou menos ridícula de uma revolução.
- Maio como crise de civilização: considera-se aqui que o movimento ‘visava menos a um regime do que a uma civilização pretendida”, insiste-se sobretudo, no questionamento da ‘sociedade de consumo’.[...]
- Maio como conflito de classes de um novo tipo: esta interpretação notadamente por ª Touraine, que vê na crise de 1968 ‘uma forma nova da luta de classes’, luta não mais diretamente econômica [...] mas sim “social, cultural e política’ [...]
- Maio como conflito social de tipo tradicional: nesta perspectiva, que é evidentemente a da interpretação comunista ortodoxa [...]
- Maio como crise política devida às instituições da V República e à ausência de uma real alternativa política [...] seria procurada na impopularidade crescente de De Gaulle[...]
- Maio como encadeamento de circunstâncias: [...] não era inevitável que os projetos de reforma Universitária fossem por tão longo tempo retardados [...]vi
Dentre os autores analisados por Ferry e Renaut, fica evidente a lacuna daqueles os que são considerados à margem do pensamento dominante – como os pensadores da I.S. e o filósofo alemão Herbert Marcuse – prestigiado entre os jovens daquela década e considerado o “filósofo da contracultura” e que esteve em Paris “nos meados de maio” viii .Certamente a inclusão desses pensadores traria mais luzes aos grupos de Teses citadas acima, especialmente nos itens: 3. Maio como acesso de febre ou como revolta da juventude, a qual foi motivado - ou quem sabe insuflados - pelo texto da I.S., “A miséria do meio estudantil”, publicado em 1967, que criticava duramente o sistema de ensino e a “sociedade de consumo”, foi amplamente lido entre os estudantes e chegou a ser proibido por decisão judicial; e 4. Maio como crise de civilização, neste item o trabalho de Marcuse - especialmente os livros Ideologia da Sociedade Avançada (One-Dimensional Man: studies in the Ideology of Advanced Industrial Society), 1964 e Eros e civilização (Eros and Civilization), de 1955, que desvelou as origens da repressão social e alienação na sociedade industrial. Conforme será visto mais adiante.
A inclusão desses pensadores contraculturais ampliaria os parâmetros de análise daquela que foi a “única revolta estudantil por um processo de deflagração em cadeia, atingiu primeiramente toda a juventude e depois toda a sociedade” ix e que à época não se enquadrou em nenhum dos esquemas ideológicos convencionais. O filósofo Edgar Morin classificou Maio 68 como um movimento pluridimencional - numa alusão ao conceito “homem unidimensional” de Marcuse, pois o Maio 68 “é difícil de ser analisado por que é um evento pluridimencional, isto é, escapa as nossas análises unidimensionais”. Ainda segundo Morim, o movimento marca uma ‘brecha’ na sociedade ocidental, onde o espírito do tempo mudou depois dos acontecimentos o mundo do “progresso da civilização do bem-estar”, da sociedade de consumo que daria lugar ao momento de incertezas e dúvidas.
O sociólogo Luciano Martins, que corrobora a opinião de Morim, argumenta que para analisar o movimento é necessário incluir a “variável juventude” a qual motivou a “mutação cultural” que originou uma “misteriosa subcultura” entre os jovens. Esta análise de Martins data de 1969, quando essas alterações na cultura pareciam algo estranho e misterioso, pois a contracultura que denominamos hoje ainda não tinha adquirido contornos claros, a sociedade adulta de então, tenta exorcizar este mistério sob a “designação de iê-iê-iê, ou onomatopoeias semelhantes” x.
O filósofo Henri Lefebvre, que era professor de Nanterre durante os episódios, analisa o movimento dos estudantes como resultado da dupla segregação da Universidade: funcional e social. Para Lefebvre, o fato de o campus ter sido implantado no subúrbio de Paris, numa paisagem “desolada e desoladora”, como uma “empresa” inclusive com “toda a fachada de uma”, criou um lugar com a “marca da ausência”, sem o convívio social da Urbe: “Funcionalmente, a cultura foi deportada pra um gueto de estudantes e instrutores, entre os guetos dos “deixados pra lá” desta sociedade. Um pensamento urbano irrisório leva a extremos a segregação, que produz efeitos paradoxais xi".
Ainda segundo Lefebvre, a revolta dos estudantes de Nanterre cujo argumento inicial fora a proibição da presença masculina nos alojamentos femininos – se “torna intolerável, porque simboliza todas as pressões e repressões” da sociedade xii.
Maio de 68: nova esquerda
O pensamento de esquerda esteve presente nas manifestações do Maio 68, contudo não se tratava mais do pensamento comunista oficial da tradição do P.C.F., e sim, de outras correntes que envolviam o marxismo ocidental e grupos pequenos e heterogêneos: membros da Liga comunista de linha trotskista; membros da UCLM de linha maoísta e simpatizantes do castrismo, simbolizado pela figura de Che Guevara “uma constante nas passeatas, muito menos por suas ideias políticas, do que pelo fato de ele se haver transformado no herói” xii .
Devido `as diferentes correntes de pensamento de esquerda, o PCF não reconheceu o Maio 68 como um movimento revolucionário legítimo e adotou uma postura dúbia, conforme relatou Júlio de Mesquita Filho, que esteve em Paris em maio de 68, e enviou artigos que foram publicados em seu jornal “O Estado de São Paulo”. Ele comenta a indecisão do PCF, que num primeiro momento mostrando “sua fraqueza e sua impotência” era contrário ao movimento denunciava “seus organizadores como agitadores, provocadores anarquistas”, depois “cinicamente, encampou as suas ideias” e, por fim, devido a recusa dos estudantes, acabou por se mostrar uma força conservadora. Ainda segundo Mesquita o PCF “está desmoralizado e desvalorizado há muito tempo, pelos menos entre os círculos intelectualmente mais evoluídos” xiv.
A desvalorização do PCF tradicional denota a formação de novas linhas de pensamento de esquerda, cujo principal referencial é o marxismo ocidental, uma tendência também em outros países, como a que surgiu em Berkeley e Colorado nos EUA e, também no Brasil, com a formação de vários grupos dissidentes do PCB, como a radical ALN no Brasil. Bresser-Pereira analisou as transformações dos PCs nos diversos países ocidentais, inclusive no Brasil, e descreve a diferença entre a esquerda tradicional e a Nova Esquerda:
“[...] é a formação de pequenos grupos revolucionários de esquerda, de base católica e/ou marxista, que adoram posições políticas muito mais radicais do que as do comunismo oficial. Estes grupos vêm conseguindo, muitas vezes, tomar as lideranças do movimento estudantil xv.
Para Sartre, o Maio de 68 foi o início da ‘revolução’ a qual fracassou devido à “concepção fechada do marxismo” do PCF, que acusou o movimento dos estudantes de “revolta burguesa”, e não se posicionou corretamente, em suas palavras:
“Terceiro ponto da argumentação comunista: o movimento estudantil é anarquista porque representa uma revolta burguesa. Como explicar então a revolta dos estudantes tchecoslovacos que nasceram num regime socialista, e cuja maioria é filha de operário e camponeses? Que querem eles? A mesma coisa que os estudantes franceses, isto é, liberdade de crítica e de autodeterminação. O que os jovens revolucionários reclamam, burgueses ou não, não é a anarquia, mas exatamente a democracia, uma democracia socialista verdadeira que ainda não se conseguiu em nenhum lugar.” xvi
Na perspectiva dos estudantes, a revolução que estaria em curo colocaria a “imaginação” no poder a qual questionaria os rumos da sociedade capitalista e industrial, conforme dizeres dos cartazes que foram afixados na Sorbonne: “A sociedade de consumo tem de morrer de morte violenta. A sociedade da alienação tem de desaparecer da história. Estamos inventando um mundo novo e original. A imaginação está tomando o poder” xvii
Portanto, a “revolução” que os estudantes franceses desejavam seria muito diferente daquela pretendida pelo Partido Comunista Francês (PCF), na qual o principal agente revolucionário seria a classe operária. Na perspectiva dos estudantes parisienses, a “revolução” seria uma reforma total que levasse a um novo modelo social, diferente tanto do capitalismo quanto do comunismo burocrático soviético. De fato, naquela época a sociedade industrial estaria entrando na fase pós-industrial, e a única certeza seria que os protestos criticavam a tecnocracia da sociedade industrial avançada xviii.
Na interpretação de Bresser-Pereira, o Maio de 68 seria um movimento que deixou claro que qualquer “revolução” no futuro, não seria mais realizada pela classe operária, como desejaria o PCF, na medida em que uma nova liderança emergiu com os estudantes e intelectuais que não desejariam entrar no processo industrial, em suas palavras:
“Ora, o que a revolta estudantil vem fazendo, ideologicamente, é exatamente essa crítica, não apenas ao capitalismo, nem do comunismo burocrático, mas da sociedade industrial moderna, da sociedade tecnoburocrática. Embora não tenham sido os estudantes os formuladores originais dessa crítica – ela vem sendo feita por um grande número de filósofos, entre os quais, talvez arbitrariamente, pudéssemos salientar Sartre e Marcuse" xix
Na opinião de Bresser-Pereira corrobora com as teses do filósofo alemão Herbert Marcuse – apontado na citação acima. Ele é sem dúvida um desses “intelectuais não comprometidos”; foi uma influência para o Maio de 68 bem como na Nova Esquerda estudantil nos EUA. Marcuse, nos anos 1960, apoiou vários movimentos de contestação como: movimento feminista, movimento ecológico, e pela igualdade de direitos civis nos EUA, como foi visto anteriormente em capítulo específico. Seus textos apontam como a sociedade industrial, apesar de aparentemente neutra, técnica e científica, é na verdade altamente ideológica na medida em que imprime a seus membros valores e crenças que impedem a liberdade individual, a ponto de formar um tipo de “homem de uma única dimensão”, em suas palavras:
“[...]Os produtos doutrinam e manipulam; promovem uma falsa consciência que é imune à falsidade. E, ao ficarem esses produtos benéficos à disposição de maior número de indivíduos e de classe sociais, a doutrinação que eles portam deixa de ser publicidade; torna-se um estilo de vida. É um bom estilo de vida – muito melhor do que antes – e como um bom estilo de vida, milita contra a transformação qualitativa. Surge assim um padrão de pensamento e comportamento unidimensionais, no qual as idéias , as aspirações e os objetivos que, por seu conteúdo, transcendem o universo estabelecido da palavra e da ação são repetidos ou reduzidos a temos desse universo" xx.
O filósofo Henri Lefebvre, professor da Universidade de Nanterre à época dos acontecimentos de Maio de 68, destaca a presença em Paris do filósofo Herbert Marcuse e das “inúmeras operações ideológicas se desenvolveram em torno dele” devido ao sucesso de seu livro One Dimensional man: “Marcuse dá aval de seu nome e de seu prestígio, pois acaba justamente de demonstrar, em One Dimensional man, como a racionalidade erigida em corpo de doutrina científica entra na ordem da sociedade industrial desenvolvida” xxi
Na interpretação do sociólogo norte americano Theodore Roszak, a tecnocracia venceu a rebelião contracultural dos estudantes franceses, uma vez que conseguiu aglutinar as forças conservadoras e manter o status quo mediante as eleições de junho daquele ano, na qual o general De Gaulle saiu vitorioso, em suas palavras:
“Na França, os aguerridos estudantes da rebelião de maio de 1968 foram obrigados a assistir ao conluio entre a amolecida CGT e o PC, que passaram a agir como órgãos de confiança do pres. De Gaulle na manutenção do governo responsável e ordeiro, face à ameaça de ‘anarquia’ nas ruas. Se os estudantes rebeldes marcham aos milhares para as barricadas, seus pais cautelosos marcham às dezenas de milhares em defesa do status quo e votam aos milhões pela manutenção da elite gerencial que o velho general recrutou na École Polytechnique com o intuito de controlar a nova prosperidade francesa. Até mesmo os operários, que engrossaram aos milhões as fileiras dos estudantes durante as primeiras fases da Greve Geral de maio de 1968, parecem haver chegado á conclusão de que a essência da revolução consiste num envelope de pagamento polpudo" xxii
Para o filósofo Jean Paul Sartre, o Maio de 1968 representou um divisor de águas também na filosofia, pois considera que após a revolta dos estudantes foi necessário reavaliar o papel do “intelectual clássico” e prol ao “novo intelectual” que estaria surgindo naquela época:
“O movimento estudantil que gerou os acontecimentos de Maio foi às ruas e contestou várias coisas e, em particular o ensino expositivo o saber e o poder do professor a interferência do Estado na Cultura o fato de ser particular quer dizer para pouca gente e não universal. E vimos que, através disso criticaram o intelectual clássico. Criticaram outras coisas, mas principalmente isso. E aí, havia duas soluções. Ou reagíamos negando que contestassem nossas consciências infeliz a estabelecida e seríamos contra eles. Então havia ligado à contestação estudantil algo errado com o intelectual
[...] Aí o que faz dele um intelectual? Acho que numa sociedade socialista ideal não haveria mais intelectuais porque essa contradição já não existiria xxiii.
Maio de 68: influência da Internacional Situacionista
A revolta estudantil francesa que teve início na Universidade de Nanterre em maio de 1968, começou sua fundamentação com o episódio conhecido como “escândalo de Strasbourg”, de 1966, do qual a Internacional Situacionista foi o protagonista.
Tudo começou quando estudantes - simpatizantes da Internacional Situacionista (I.S.), foram eleitos para o diretório acadêmico da Universidade de Strasbourg, em 1966, com a controvertida plataforma: “acabar com o próprio diretório”. Como não sabiam como concretizar sua promessa de campanha, entraram em contato com a I.S. segmento de Paris e contaram com a ajuda de Mustapha Khayati. A I.S. não apenas escreveu o texto de encomenda como, também, planejou a estratégia para o seu lançamento xxiv.
O manifesto “A miséria do meio estudantil – Considerado em Seus aspectos Econômico, Político, Psicológico, Sexual e , mais Particularmente Intelectual e Sobre Alguns Meios ara Remediá-la”, publicado em edição de luxo com tiragem de 10 mil exemplares, foi distribuído durante “uma tradicional cerimônia oficial da universidade” , causando escândalo devido aos ataques contra a esquerda tradicional PCF, os intelectuais, o establishment e até a União Nacional dos Estudantes da França; seu conteúdo claramente contracultural aponta o estudante francês como um “ser miserável” xxv na sociedade:
“Pode-se dizer, sem grandes riscos de errar, que o estudante na França é, depois do policial e do padre, o ser mais universalmente desprezado. Os motivos por que ele é desprezado são, com freqüência, falsos motivos produzidos pela ideologia dominante. Já os motivos por que ele é efetivamente desprezível e desprezado do ponto de vista da crítica revolucionária são recalcados e dissimulados. No entanto, os partidários da falsa oposição sabe reconhecê-los, e se reconhecer neles. Por isso, eles invertem esse desprezo real transformando-o numa admiração complacente. Assim, a impotente intelligentsia esquerdista (da revista Temps Moderns ao L’Express) fica pasma ante a pretensa ‘subida dos estudanres’, e as organizações burocráticas decadentes (do Partido Comunista à stalinista UNEF – União Nacional dos Estudantes da França) travam enciumadas batalhas pelo apoio ‘moral e material’ dos estudantes." xxvi
Como estratégia de lançamento, foram elaborados cartazes que reproduziam trechos da história em quadrinhos criada por André Bertrand e textos de Michele Bernstein, os quais foram fixados nos muros da Universidadexxvii . A ação do diretório acadêmico com apoio da I.S. foi um escândalo amplamente divulgado pelos jornais europeus, que culminou com um processo judicial promovido pela Universidade contra o diretório acadêmico. Por decisão judicial o diretório foi encerrado e o texto proibido. Após o escândalo e proibição, contudo, o manifesto foi divulgado no meio estudantil da França e de outros países: Itália, Grécia, Espanha, Holanda, Inglaterra e EUA, neste foi distribuído na Universidade de Berkeley, onde ocorrera as manifestações da Nova Esquerda em 1964.
Naquela época, a I.S. foi considerada “um grupo de perigosos desvirtua dores da juventude”, e ganhou muita visibilidade com o escândalo. Depois publicaram a I.S. publicou outros dois textos em sua revista Internationale Situationist: “Sobre alguns meios para remediá-la”, escritos por KHAYAT xxviii argumentava sobre como remediar a “miséria estudantil” e “Nossos objetivos e métodos no escândalo de Strasbourg” 1966, escrito por Debord, justificando o apoio da I.S. aos estudantes do diretório de Strasbourg xxix . Os situacionistas estavam convencidos que os estudantes poderiam ser os principais propulsores da ‘revolução’, principalmente após os episódios ocorridos em Berkeley, EUA, em 1964. O que confirma o intercâmbio de ideas entre a Nova Esquerda norte americana e os situacionistas.
Em 1968, no início do movimento de Maio de 68, o texto “A miséria estudantil ...” foi distribuído na Universidade de Nanterre e serviu como uma espécie de ‘detonador” daquele movimento, como declarou Daniel Cohn Bendit: “ O texto funcionou como uma espécie de detonador....Nós fizemos tudo o que pudemos para distribuí-lo”. xxx
A I.S. participou ativamente do “Conselho pela Manutenção das Ocupações” influenciando diretamente os estudantes líderes do movimento - os Enragés. O texto “Dirigida a todos os trabalhadores”, é assinado por: “Enragés Comitê Internacional Situacionista – Conselho para manutenção das ocupações, Paris, 30 de maio de 1968, com palavras de encorajamento citando, inclusive, “A sociedade do espetáculo” de Debord, que não seria o mais desinteressado dos observadores:
“Companheiros,
O que estamos fazendo na França está assombrado a Europa e logo amedrontará todas as classes dominantes do mundos [....]
[...] A manutenção da velha sociedade, ou a formação de novas classes exploradores, foi conseguida todas às vezes através da supressão dos conselhos. Agora, a classe trabalhadora conhece seus inimigos e seus métodos de ação adequados. “As organizações revolucionárias tiveram de aprender que não se pode lutar contra a alienação através de meios alienados” (A sociedade do Espetáculo)”. Os conselhos de trabalhadores são certamente a única saída, uma vez que todos os outros meios de luta revolucionárias conduziram ao oposto do que se pretendia.” xxxi
Apesar dos situacionistas acreditarem, que os estudantes seriam os principais agentes da “revolução que haviam previsto” xxxii o texto dirigido aos trabalhadores denota que não seria possível concretizá-la sem o apoio dos trabalhadores. O que acabou se confirmando, os trabalhadores desistiram e a “revolução” fracassou.
Maio de 68: a influência dos Provos
As manifestações estudantis ocorridas nas universidades francesas de Strasbourg, 1966 e Nanterre, 1968, têm um antecedente relevante no que diz respeito a sua forma de ação. Trata-se do grupo contracultural holandês Provo. Apesar do líder do movimento de Maio de 68, Cohn Bendit não admitir a influência, tanto os Provos quanto o Maio de 68 tomaram de assalto as autoridades que não souberam como reagir diante das manifestações. Os ‘homo ludens’ parisienses utilizaram estratégias semelhantes as do Provos, cartazes, frases de efeito escritas nas paredes em toda parte e concentrações em diferentes lugares. Apesar das barricadas erguidas utilizando as pedras do leito carroçável e outras atiradas pelos estudantes do Maio 68contra os policiais, estes não reagiram com armas de fogo, diferentemente das autoridades norte americanas que atiraram contra os estudantes, como vimos anteriormente. No caso francês o movimento foi sentido como um jogo, devido ao “caráter lúdico dos combates entre os estudantes e as forças de ordem” , ou ainda como um estado de férias, conforme análise de Edgar Morim:
“O fenômeno notável é que a paralisia do poder social se traduziu numa alegria dos indivíduos [...] Maio de 68 foi sentido como ‘férias’ e uso essa palavra em seus dois sentidos: um vazio na teia dos dias que se transformou em férias, em festa e em liberdade. E o mais importante é que esse estado foi vivido não só pelos estudantes, mas nas primeiras semanas, por toda a cidade grande, Paris.” xxxiii
Considerações finais
Maio de 68 foi um movimento “pluridimencional” seguindo a perspectiva marcuseana, havia no cerne dos protestos uma gama de questionamentos e desejos imbricados: desejo pela revolução e mudança do regime; recusa em seguir um futuro pré-determinado dentro da sociedade capitalista industrial ; e, principalmente, desejo em valorizar a subjetividade, ou seja, de ser o sujeito de sua biografia e ter liberdade de escolha pra desfrutar a vida. Foram desejos ambiciosos e contraditórios, que representaram as aspirações daquela geração. Por isso, Maio de 68 foi entendido como um marco simbólico da revolução cultural e contracultural dos jovens dos anos 1960.
Referências
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Notas:
i Cf. MORIN, Edgar. O jogo em que tudo mudou. [IN] Maio de 68, organização Sérgio Cohn e Heyk Pimenta, Rio de Janeiro, Beco do Azougue, 2008, p. 29.
iiCf. MARTINS, Luciano. A “geração AI-5 e Maio de 68: duas manifestações intransitivas. Rio de Janeiro, Argumento, 2004, p. 120.
iii Ibidem,p. 123.
iv A vitória de De Gaulle nas eleições de julho foi justamente atribuída ao argumento equivocado de “complô” da esquerda contra o governo. Ver: MORIN, Edgar. O jogo em que tudo mudou. [IN] Maio de 68, organização Sérgio Cohn e Heyk Pimenta, Rio de Janeiro, Beco do Azougue, 2008, p. 30
v MARTINS, Luciano. A “geração AI-5 e Maio de 68: duas manifestações intransitivas. Rio de Janeiro, Argumento, 2004, p. 123.
vi FERRY, Luc; RENAUT, Alain. Pensamento 68:ensaio sobre o anti-humanismo contemporâneo: São Paulo, Ensaio, 1988, p. 12.
vii Ibidem, p. 13.
viii Analisando o movimento Maio de 68, Henri Lefebre destaca a presença de Marcuse: “ No decorrer da visita de Herbert Marcuse a Paris, nos meados de maio, inúmeras operações ideológicas se desenvolveram em torno dele.” Cf. Lefebvre fala dos Estudantes, na explosão de Maio em França e de Marcuse. [IN] Revista Civilização Brasileira, ano IV, n. 19 e 20, Maio/agosto, 1968, p.91-98.
ix MORIN, Edgar. O jogo em que tudo mudou. [IN] Maio de 68, organização Sérgio Cohn e Heyk Pimenta, Rio de Janeiro, Beco do Azougue, 2008, p. 29.
x Ibidem, p. 139.
xi Lefebvre fala dos Estudantes, na explosão de Maio em França e de Marcuse. [IN] Revista Civilização Brasileira, ano IV, n. 19 e 20, Maio/agosto, 1968, p.91-98.
xii Ibidem.
xiii MORIN, Edgar. O jogo em que tudo mudou. [IN] Maio de 68, organização Sérgio Cohn e Heyk Pimenta, Rio de Janeiro, Beco do Azougue, 2008, p. 29.
xiv JULIO DE MESQUITA FILHO. No Brasil, haveria perigo. Ver PONTES, Jose; CARNEIRO, Maria Lúcia. 1968, do sonho ao pesadelo: São Paulo: O Estado de S. Paulo, 1968, p. 22.
xv BRESSER-PEREIRA, Luiz . As revoluções utópicas do anos 60. São Paulo, Editora 34, 2006, p. 55
xvi SARTRE, Jean Paul . Entrevista concedida ao Nouvel Observateur, publicada em Civilização Brasileira, 12/20, maio-ago. 1968, pp.63-4.
xvi Manifesto afixado em frente à Sorbone em maio 1968 [IN] CARMO, Paulo Sérgio do. Cultuiras da Rebeldia: a juventude em questão. São Paulo, Editora Senac São Paulo, 2003.
xviii O termo tecnocracia é definido por Theodore Roszak da seguinte maneira: “Quando falo em tecnocracia, refiro-me àquela forma social na qual uma sociedade industrial atinge o ápice de sua integração organizacional. É o ideal que geralmente as pessoas têm em mente quanto falam de modernização, atualização, racionalização, planejamento. Com base em imperativos incontestáveis como a procura de eficiência, a segurança social, a coordenação em grande escala de homens e recursos, níveis cada vez maiores de opulência e manifestações crescentes de força humana coletiva, a tecnocracia age no sentido de eliminar as brechas e fissuras anacrônicas da sociedade industrial.” Ver: ROSZAK, Theodore. A contracultura: Reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil.Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1972, p. 19.
xix Ibidem, p. 79.
xx MARCUSE, Herbert. Ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, p. 31-32.
xxi Lefebvre fala dos Estudantes, na explosão de Maio em França e de Marcuse. [IN] Revista Civilização Brasileira, ano IV, n. 19 e 20, Maio/agosto, 1968, p.91-98.
xxii ROSZAK, Theodore. A contracultura: Reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil.Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1972.
xxiii SARTRE NO CINEMA “Sartre por ele mesmo, 1976” direção Alexandre Astruc, 187 minutos.
xxiv Ver apresentação de Maietta Baderna [IN] Situacionista: Teoria e prática da revolução. Internacional Situacionista: São Paulo, Coleção Baderna, Conrad Editora do Brasil, 2002, p. 10.
xxv Ibidem, p. 11.
xxvi KHAYATI, Mustapha: A miséria do meio estudantil – Considerado em Seus aspectos Econômico, Político, Psicológico, Sexual e , mais Particularmente Intelectual e Sobre Alguns Meios ara Remediá-la [IN] Situacionista:Teoria e prática da revolução. Internacional Situacionista: São Paulo, Coleção Baderna, Conrad Editora do Brasil, 2002, p. 29.
xxvii Os personagens dos quadrinhos de André Bertrand são caubóis ou tubos de pastas de dentes que discutem conceitos marxistas.
xxviii Marietta Baderna na apresentação dos textos dos situacionistas afirma: “se um texto situacionista teve grande importância para gestação do Maio de 68, foi esse”. Ver: Situacionista:Teoria e prática da revolução. Internacional Situacionista: São Paulo, Coleção Baderna, Conrad Editora do Brasil, 2002.
xxxix Texto publicado originalmente na revista Internacionale Situacionniste, n.11, out. 1967 [IN] Situacionista:Teoria e prática da revolução. Internacional Situacionista: São Paulo, Coleção Baderna, Conrad Editora do Brasil, 2002.
xxx APUT Marietta Baderna. Ver: Situacionista:Teoria e prática da revolução. Internacional Situacionista: São Paulo, Coleção Baderna, Conrad Editora do Brasil, 2002.
xxxi Texto “Dirigida a todos os trabalhadores” Ver: Situacionista:Teoria e prática da revolução. Internacional Situacionista: São Paulo, Coleção Baderna, Conrad Editora do Brasil, 2002, p. 148.
xxxii Stwart Home denomina Specto-situacionista a facção francesa da Internacional Situacionista. Ver HOME, Stwart. Asalto a cultura. P. 81.
xxxi Ibidem, p. 30
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