O Quartinho Invisível: Apresentação Prof. Dr. Marcos Napolitano

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A arquitetura brasileira pode ser considerada a menina dos olhos do nosso sonho de modernidade. Mais do que modernidade - sensibilidade difusa para o novo conforme o “ar do tempo” - estamos falando também de modernismo, movimento de afirmação consciente do novo.

Amplamente conectado à utopia da construção de um novo país, filtrando elementos da tradição artística e arquitetônica, o modernismo brasileiro sonhou também com uma sociedade integrada, social e racialmente falando. Não por acaso, a ideologia da mestiçagem e os projetos de desenvolvimento nacional são coetâneos ao longo modernismo brasileiro, ou seja, aquele vigente entre as décadas de 1920 a 1970. A arquitetura brasileira foi o laboratório deste sonho, materializado em cidades, edifícios públicos, casas particulares. Brasília é sua expressão mais complexa e ousada. Mas seria ingênuo supor que o modernismo brasileiro e sua expressão de ponta, a arquitetura e o urbanismo, ficassem imunes às contradições da modernização “realmente acontecida” em nosso país. As utopias de livre circulação social, de trabalho livre e valorizado, de moradia em espaços funcionais, democráticos e, ao mesmo tempo, belos e agradáveis, se chocaram com os arcaísmos das nossas relações sociais. Ademais, nossas elites políticas e econômicas nunca conseguiram criar as condições mínimas para a efetiva democratização social, e frequentemente apelaram para soluções autoritárias que repuseram as hierarquias vigentes e a miserabilidade na base social. A intensa e desenfreada urbanização e a diáspora popular que se seguiu, com seus efeitos caóticos sobre as cidades brasileiras, criaram espaços segregados e esconderam as belezas da arquitetura moderna atrás de muros, cercas elétricas e catracas de acesso.

Apesar disso, a história se move. O tempo flui e as formas de morar também mudam, impondo novos padrões e valores. Mas em uma sociedade atravessada pelo choque paralisante entre o arcaico e o moderno, certas permanências são reveladoras das exclusões e tensões sociais não resolvidas. O livro de Edite Galote desvela uma dessas permanências, em que pese os esforços para que ela se torne invisível nas plantas baixas, cursos e debates sobre arquitetura: o “quartinho de empregada”. Obviamente, este é um nome genérico que o livro escolhe para designar os vários formatos das “dependências dos trabalhadores domésticos” em todas as suas formas históricas e funções sociais, da casa bandeirista ao apartamento do século XXI. Olhar com atenção para este tipo de dependência e suas mutações ao longo do tempo, o que Edite Galote faz com coragem e competência, é romper um tabu, é propor um objeto de estudo que vai muito além da história da arquitetura.

No “quartinho de empregada” residem velhos fantasmas da sociedade brasileira, e suas mudanças ao longo do tempo apenas camuflam esta permanência, remetendo aos tempos da escravidão e suas heranças mais diretas, que estão presentes na vida de muitas famílias. O quartinho e sua disposição em relação aos cômodos gerais das casas revelam o lugar do trabalhador doméstico na vida brasileira do passado e do presente, e denunciam padrões de uso desta mão de obra a baixo preço que vai muito além das famílias conservadoras e elitistas. Nele está inscrita a noção de disponibilidade full time do empregado, naturalizada em um passado não muito distante, como se este não tivesse direito à folga, férias, descanso remunerado e condições dignas de moradia. Revela-se o convívio tenso entre pessoas com direitos assimétricos de espaço, privacidade e intimidade. Revela-se a outra face da vida familiar burguesa ou aburguesada, posto que até em minúsculos apartamentos de classe média, lá está o nosso indefectível quartinho. Revelam-se, enfim, os ecos da escravidão, camada recalcada dos nossos “males de origem”. Em tempos obscuros e conservadores, nada melhor do que iluminar este (in)cômodo, revelando cantos não vistos da história da arquitetura, mas também da nossa história social mais ampla.

 

Professor Doutor Livre Docente Marcos Francisco Napolitano de Eugênio - Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. 

Doutor (1999) e Mestre (1994) em História Social pela Universidade de São Paulo, onde também graduou-se em História (1985). Foi professor no Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (Curitiba), entre 1994 e 2004,e professor visitante do Instituto de Altos Estudos da América Latina (IHEAL) da Universidade de Paris III (2009). Atualmente, é professor de História do Brasil Independente e docente-orientador no Programa de História Social da USP. É assessor ad-hoc da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e do CNPq. Especialista no período do Brasil Republicano, com ênfase no regime militar, e na área de história da cultura, com ênfase nas relações entre históira e música popular e história e cinema. Também possui experiência na formação de professores do ensino básico, com foco no uso do audiovisual na escola.

 

Como citar: 

NAPOLITANO, Marcos. O quartinho invisível: apresentação do professor Dr. Marcos Napolitano.Revista 5% arquitetura + arte, São Paulo, ano 13, volume 01, número 16, pp. 100.1- 100.X, ago. dez. 2018. disponível em: http://revista5.arquitetonica.com/index.php/uncategorised/o-quartinho-invisivel-apresentacao-prof-dr-marcos-napolitano

 

 

 

 

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