Bodas de Ouro*

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RICARDO CARRANZA

O manto púrpura, o esplendor de ouros em cascata, volutas refulgentes, dízimos de azul, vermelho e amarelo envelhecidos, aprofundados, cores de matéria adensada pela transposição de raios luminosos, sol espiritualizado e filtrado através dos poros do vidro azul, vermelho e amarelo, figura de apóstolo a cavalgar o dorso de ondas eletromagnéticas, ribombar amortecido na face polimórfica, cristal vertical dourado do retábulo, 

cristal horizontal dourado do altar, cálice de sonoridade áurea, disco conciso de corpo e alma e sangue e chagas, mãos pálidas suspensas no arco do serviço, devoção de uma vida, turíbulo de pétalas sensuais, perfumadas, tez aveludada, espalhando-se na caverna erigida a breu e fogo, alma humana, profusão de pequenos pássaros disparados como setas de silvos agudos dispersos no útero da nave, atmosfera abafada e constrita, reflexos dourados tintos de azul, vermelho e amarelo, a culpa felina atravessando o saguão da sacristia, reconstrói a solidez original do seu esplendor primevo – Amém.

O pequeno espelho apoiado à garrafa de óleo: imagem sagrada e polida na devoção de uma vida. O sacerdote consagra o casal ao mistério de Cristo. A família contempla emocionada. Um vento inesperado infla as cortinas do relicário da sua memória. Ela voa. Casados há uma semana. Foram poucos encontros silenciosos e constrangidos na presença dos pais. No dia do casamento, o primeiro par de sapatos, para ambos foi o único presente. E logo a rotina se impõe. O pequeno caldeirão de arroz, feijão coroados com três torresmos: Pai, Filho, Espírito Santo. Ela reúne as pontas do saco de farinha e amarra o caldeirão com um duplo nó bem esticado de forma que fique bem firme. A filha mais velha se aproxima pela trilha do cafezal. O pai larga a enxada. Respeitável escravo branco, de sol a sol na lavoura de café. Come em silêncio, sentado no chão de terra avermelhada. A mãe com a casa, o tanque de roupas. Eles fundam uma parcimônia austera e orgulhosa. O espelho apoiado à garrafa. O rosto ensaboado de espuma. A navalha desliza em desvelo à pele rosada no que ela adverte, aflita - Assim vai quebrar! - Ele cospe a carga do seu sarcasmo. - Ah, é? Vai quebrar? - E estoura a garrafa na parede, o espelho rachado no chão. Batismo de óleo na parede caiada de branco. O vento na folhagem corta a noite com seu assobio sobrenatural. Fundado o rito de suas noites. Ele ronca. Ela repassa a cena, espelho e garrafa, anos a fio. O sacerdote segue o seu latim. Ela em desdobro além da imagem do Cristo crucificado.

           - Nesse dia eu conheci teu pai. - A garrafa espatifada, o espelho rachado, a torneira aberta, o tanque de roupas, o segredo confiado à filha mais velha que sempre fora paciente com o rigor do relato.

O sacerdote os abençoa. Eles recobram a mobilidade. As pernas formigam, seu braço apoia-se no dele. A família se ergue e sorri aliviada. Como foi bela a cerimônia, comentam. Como foi longa, pensam. Como o tempo passa, ela pensa. Cinquenta anos numa faísca. Da roça do café à cidade grande, do lampião à luz elétrica, do chão de terra ao trilho do bonde, da juventude à velhice, na mesma faísca. Seu pigmento de vida diluído do cafezal ao labirinto urbano; o martírio do primeiro sapato, a cantilena da água no tanque de roupa, a missa aos domingos, as compras de Natal no grande mercado, a família reunida nas janelas do calendário. O rosto pálido, os olhos cinzentos, o anjo rebelde pousa atraído pelo movimento da sala. Ele ria, vermelho, os olhos molhados como sempre quando se emociona. Ela desconfia, o olhar discreto corre ao redor; pousa na gravura da manjedoura, o retrato de Paulo VI, perpassa a família reunida, retoma o olhar cinzento e distante, imagem da sua índole. O patriarca tira sua baforada, a névoa azulada flutua ao redor dos pés, aura profana. O canto do olho escala a esposa, depois a plateia, então declama o poema de uma vida.

           - Ela estava parada na porta de casa. O chapéu de palha - faz o círculo com os braços. – E eu pensei - Essa morena é minha! - a voz rouca, o largo gesto abraça o mundo. A família ri. Ela reluta, segundos esvoaçam da cidade ao campo; embaraçada, relutante, concede o sorriso discreto; e o milagre: o poema - Essa morena é minha!  - eclipsou o eterno ressentimento.

Quando anunciou o café, todos aprovaram como de costume. O perfume do seu café era famoso. Ela caminha até a cozinha, os passos cuidadosos depois que fraturara a rótula do fêmur, o corpo arcado, o orgulho imaculado. Sua dor, sua crença. Saberia viver sem ela, agora, na extremidade da vida? Memórias cultuadas em longos silêncios. Ele lembraria a sua explosão de cólera, cruz trágica fincada na noite agreste? Derrama a água fervente sobre o pó de café. O perfume alcança a sala que o devolve como uma flor já esperada.

Durante a noite, separados por uma porta, ele ronca no quarto ao lado. Ela reconstrói espelho e litro, mais uma vez, observando cada detalhe de forma a fazer justiça ao rito. Só então fazê-los em cacos. A imagem deve permanecer sagrada.

* O conto Bodas de Ouro foi classificado no I Prêmio Nacional Cidade de Porto Seguro, Contos, BA, 2009

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