A Linguagem de Concepção: o croqui
EDITE GALOTE CARRANZA
RICARDO CARRANZA
O processo de projeto é desencadeado pela etapa de concepção, quando o arquiteto elabora graficamente, as linhas gerais do objeto a ser construído. A etapa de concepção precede a sequência de desenhos técnicos que serão efetivamente empregados para conduzir a construção de um edifício ou edificação.
Os desenhos de concepção, denominados croquis, constituem a gênese de um projeto. Desde uma residência unifamiliar a um complexo hospitalar, são com aqueles desenhos preliminares que a idéia se materializa. Na etapa de concepção o arquiteto se defronta com um processo de síntese extremamente complexo, pois, é a partir de desenhos esquemáticos, aparentemente toscos, singelos, que devem ser colocadas, em uma perspectiva coerente, as várias áreas de conhecimento que o projeto contempla. Um croqui deve atender a questões de ordem estrutural, plástica, de orientação e circulação, conforto ambiental, técnicas construtivas, legislação, custo, prazo, sustentabilidade e instalações. O croqui será a base para os desenhos técnicos de anteprojeto, sobre o qual se debruçarão projetistas de diversos segmentos. O desafio para o arquiteto é que sua concepção se mantenha íntegra. No período eclético da arquitetura, final do séc. XIX, os desenhos de concepção eram baseados em modelos historicistas e os arquitetos trabalhavam em perspectivas que não ocultavam o caráter de uma receita cenográfica estabelecida “a priori”. A arquitetura moderna assumiu o compromisso de desvincular o arquiteto - desenhista da Corte, e encaminhá-lo à sua função social de profissional engajado com o seu momento histórico. Os croquis de Le Corbusier ou Mies Van Der Rohe eram essencialmente objetivos, qualquer traço de hedonismo foi banido para ser fiel à comunicação de uma idéia.
Croqui
A linguagem de concepção de um projeto de arquitetura possui forte vínculo com o profissional que a utiliza. As canetas com ponta porosa ficaram famosas nas mãos de Oscar Niemeyer, adepto de um croqui extremamente sintético, sempre associado a um memorial justificativo. Lina Bo Bardi utilizava cores visando uma possível ambiência emocional de seus projetos. O arquiteto americano James Wines faz uso de aquarelas artísticas para a apresentação de seus projetos. Existe toda uma gama de variações possíveis e viáveis para os estudos de concepção. O desenvolvimento de uma idéia arquitetônica implica um processo de síntese de grande envergadura. O croqui deve contemplar o projeto, em sua escala preliminar, em toda sua complexidade – plástica, técnicas construtivas, solução estrutural, implantação, e sua coesão e integridade será testada nas etapas subseqüentes.É importante ressaltar que a concepção de um projeto não é tarefa meramente pragmática, mas eminentemente cultural. Intuição, emoção, repertório, são fatores tão importantes quanto programa, local ou norte. Nesse aspecto, é elucidativo traçarmos um contraponto entre o croqui e a informática. O Autocad, ferramenta revolucionária e poderosa, não nos parece a mais adequada para o desenho de concepção. Enquanto o croqui é um desenho em que a solução vai crescendo organicamente, com o Autocad uma linha precisa de dimensão, sentido, ângulo ou raio. Dessa forma, o arquiteto ver-se-ia forçado a lançar dados “a priori”, para compará-los com o que pretendia, enquanto que o croqui permite a fluência e fruição mais livres, ficando os demais parâmetros em segundo plano. O Autocad induziria a uma precisão em um estágio em que esta não seria necessária. O Autocad, como ferramenta de projeto, contribuiria para o arquiteto que pretende trabalhar a partir da geometria descritiva, ou utilizando uma mesa digitalizadora. Cabe sublinhar que o mouse não foi concebido para ser utilizado como um lápis ou um pincel, mas para “clicar” comandos. O desenho é arte visual, e o croqui é linguagem gráfica extremamente sintética, orgânica, não exclusivamente analítica.
“O desenho“seco” e analítico é a exigência básica da arquitetura moderna, a qual elimina a representação scenográfica, sombreada e indistinta, em que a imagem é abafada por outros fatores que se sobrepõem à idéia da arquitetura. O desenho “magro” é quase um “não desenho” e não quer fazer concorrência à obra já realizada, como acontecia com as grandes perspectivas scenográficas que, em certo sentido, esgotavam a obra arquitetônica, numa esteril sobre-estrutura. Le Corbusier desenha magnificamente, de maneira “intelectual”, e poderia “descrever” em lugar de desenhar; e Saul Steinberg, que também é arquiteto, pode ser tomado como exemplo de síntese analítica, estreita e perfeita como documentação de uma, por assim dizer, linguagem arquitetônica desenhada.”[2]
Um exemplo de croqui seco, ou sintético, é o de Oscar Niemeyer. Nas fiuras 1,2 e 3, vemos seus estudos para o Paço de São Paulo, de 1952. O projeto não foi construído, mas seu desenvolvimento já apresentava o método que o arquiteto carioca viria consagrar ao longo de sua carreira. Um conjunto de croquis vem acompanhado de um memorial justificativo. É provável a influência, ou ascendência, de Le Corbusier no que se refere à correspondência entre reflexão e desenho, sobre Oscar Niemeyer, que deve tê-la assimilado durante a participação no projeto para o Ministério da Educação e Saúde – 1936/1943.
O arquiteto Eduardo Longo[3], que pode ser considerado um desenhador[4], formado pela Faculdade de Arquitetura Mackenzie, é provável que tenha seguido o conselho de seu mestre, o arquiteto Franz Heep: “Precisa desenhar, precisa desenhar”[5].
Os croquis de Eduardo Longo são expressivos e “livres”, ao contrário de muitos arquitetos modernos, que possuem croquis mais precisos, compostos de linhas, os de Longo possuem “massa” [fig. 4 e 5]. Seu croqui é denso, escultórico, orgânico, característico do arquiteto. Ao contrário do resultado cenográfico, nos deparamos com uma linha intuitiva de trabalho, em que o acumulo de traços propicia um desenvolvimento mais intuitivo da concepção, como se o arquiteto buscasse, através do adensamento, uma leitura dos principais planos com as quais se identificaria no decorrer do processo. Neste caso, existe um discurso subjetivo, calcado no fazer, entre o arquiteto e sua concepção.
É notável que este tipo de croqui nos dá a sensação de volume e consistência através de seu caráter ambíguo, que tanto pode ser entendido como vista superior quanto perspectiva de massa, ou perspectiva e leitura de planos em elevação. É interessante observar o cuidado com o croqui, quanto ao peso gráfico, reforçando a plástica, e a inserção da escala humana e vegetação, como forma de estabelecer relações de proporcionalidade.
Agora, vamos acompanhar uma seqüência de estudos para uma outra residência. A primeira prancha [fig.6] apresenta um desenho, em planta, com linhas irregulares partindo do centro para a periferia, como a "raiz" de um vegetal, e que corresponde a uma distinção entre as diferentes zonas da casa – social, íntima e serviço. Acima deste desenho, linhas indicando as projeções ortogonais e o desenho da elevação.
Na segunda prancha [fig.7], o arquiteto desenvolve a planta, que apresenta claramente três setores separados por uma linha mais forte. Ao lado da planta, um desenho em perspectiva, denso, bem definido, com luz e sombra.
Na terceira prancha [fig.8], com vários pequenos croquis, o arquiteto procura um novo caminho. Os planos são ortogonais, com retângulos e troncos de pirâmide. Linhas fortes e superfícies escuras indicam aberturas com vidro, pergolados ou clarabóias, elementos do repertório do arquiteto.
Na quarta prancha [fig.9], três perspectivas apresentam soluções diferentes para o encontro dos vedos com as lajes inclinadas de cobertura. A volumetria já se aproxima do desenho final.
Na quinta prancha [fig.10], uma planta maior, de cobertura, indica três volumes posicionados em torno de um quarto elemento de ligação no centro. Em outra planta, menor, com apenas três volumes e duas perspectivas, vê-se claramente três troncos de pirâmide, que correspondem à solução final da casa.
Na sexta e última prancha [fig.11] uma perspectiva mostra a volumetria com maior definição, através de traços mais diretos e vigorosos, indicando que esta deve ser a conclusão deste estudo de concepção.
“Ter-se-á de fazer um discurso à parte sobre desenho, como meio de prever, ou seja, sobre desenho como projeto. Através da simulação gráfica do edifício construído podem prever-se as contribuições que a construção pode fornecer sendo realizada. Esta simulação permite pôr à prova as hipóteses, transformando-as em predições verificáveis.O primeiro controle de qualidade do futuro edifício é efetuado pelo projetista quando analisa criticamente os próprios desenhos, o outro é efetuado pelos clientes que através da leitura da documentação gráfica e verbal devem estar à altura de aprovar ou não o projeto. Para que isto seja feito, os desenhos têm de conter uma informação completa sobre a qualidade prestativa do futuro edifício.O desenvolvimento da informática representa outra razão para a importância em compreender e clarificar a função do desenho, se considerar que grande parte das informações vem a ser elaborada e transmitida de forma gráfica.”[6]
[1] Capitulo do livro “Escalas de Representação” a ser publicado pela Pro-livros em 2005.
[2] BO BARDI, Lina – Contribuição propedêutica ao ensino da teoria da arquitetura/Lina Bo Bardi. São paulo, Instituto Lina Bo Bardi, 2002.
[3] CARRANZA, Edite Galote R. Eduardo Longo na arquitetura moderna paulista: 1961-2001.São Paulo. Dissertação de mestrado apresentada a Universidade Presbiteriana Mackenzie para obtenção do t
[4] Desenhador na concepção de Artigas. Ver: ARTIGAS,João Batista Vilanova.Caminhos da arquitetura.São Paulo: Pini: Fundação Vilanova Artigas, 1986, p. 48.
[5] Sobre o arquiteto Franz Heep, ver :GATTI, Catharine. Perfil de arquiteto – Franz Heep. Revista Projeto, São Paulo, n.84, p.97-104, 1983.
[6] MASSINORI, Manfredo – Ver pelo desenho. Rio de Janeiro, Edições 70, 1989.
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