DOZE POEMAS DE MATSUO BASHÔ

Categoria: Poesia

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GUSTAVO FRADE

 Resumo

 

Tradução de doze hokku (forma mais conhecida como haikai) de Matsuo Bashô com breve introdução e comentários gerais sobre a tradução e específicos sobre cada um dos poemas. Como o gênero oferece o desafio de desenvolver imagens dentro de uma forma fixa extremamente concisa e como a brevidade é marca característica dos poemas, o texto traduzido também segue uma espécie de padrão rítmico 5-7-5 que se aproxima um pouco da contagem japonesa de unidades rítmicas. Como outra marca essencial do gênero é a composição particularmente atenta à construção de imagens e à sequência dessas imagens, essas imagens e a ordem em que elas aparecem no texto são prioridades da tradução. A seleção foi feita com o objetivo de apresentar poemas dedicados a cada uma das estações do ano, de bom humor, de reflexão introspectiva, de algum pensamento sobre a poesia e ainda um caso de métrica peculiar.

Palavras-chave: Bashô, haikai, haiku, hokku, poesia japonesa. 

 

Matsuo Bashô e o haikai[2]

 

         Acredita-se que, em 1644, na antiga província de Iga, localizada em Honshû, a maior ilha que forma o território do Japão, nasceu Matsuo Kinsaku, que depois recebeu o nome de Matsuo Munefasa.[3] Diz-se que quando se mudou do centro da capital do xogunato, Edo (atual Tóquio), para Fukagawa, na periferia, chamava a atenção em sua cabana uma bananeira plantada, de uma variedade japonesa que não dá frutos, chamada de bashô (Musa basjoo). Em pouco tempo, bashô passou a designar a cabana e também o poeta que hoje é o mais popular do século XVII japonês.

        Dois termos são importantes para uma classificação do gênero dos mais famosos poemas de Bashô: haikai e hokku. Pela recepção ocidental no século XX, adquire importância também o termo haiku. O famoso padrão de cinco unidades rítmicas introdutórias, sete como desenvolvimento e mais cinco como conclusão (5-7-5), desenvolveu-se a partir de formas anteriores. A expressão poética em língua japonesa mais tradicional da aristocracia dos séculos VIII a XII era o gênero clássico chamado de waka, composto pelo padrão 5-7-5-7-7. Nos séculos seguintes, tendo o waka como base, surgiu o renga, em que mais de um poeta, em performance coletiva, se alternavam ligando em sequência estrofes de 5-7-5 e 7-7, expandido a antiga forma de poema curto.

       O haikai surge como uma estética específica ou um modo particular de pensar a arte poética aplicada ao renga. Era o haikai no renga, “renga cômico” ou “bem humorado”, abandonando alguns elementos da estética aristocrática do waka e introduzindo o uso de palavras e temas mais populares. Pelo sucesso de público, alguns poetas que se destacavam podiam ganhar a vida como haikaishi, mestres do haikai. As escolas poéticas proliferavam, entre elas, a escola Shômon, de Bashô. Ele introduz um tom mais sério aos poemas e aplica sua estética a outros meios, como a pintura e a escrita em prosa.

          Os mais famosos poemas de Bashô são hokku. A forma que se popularizou no Brasil como haicai ou haikai e desenvolveu tradição própria é inspirada pelo hokku, que designa a estrofe inicial daquelas sequências compostas em conjunto. Essas primeiras estrofes, com o padrão rítmico 5-7-5, seguiam certas convenções de composição: constituíam uma unidade de sentido e apresentavam kigo, uma palavra que (para um receptor japonês do século XVII ou conhecedor da tradição poética) remeteria a uma estação do ano específica. O hokku, desse modo, tem como especialidade captar, de forma sucinta, imagens da experiência humana diante da natureza e das mudanças do espaço e do tempo.

        Pela posição especialmente importante nos poemas compostos em conjunto e por ter um sentido independente, poetas começaram a compor hokku sem pressupor uma continuação da sequência. No século XIX, Masaoka Shiki e outros poetas revitalizaram a composição dos poemas curtos, com unidade completa e esquema rítmico 5-7-5. Eles usaram o termo haiku para diferenciar sua nova produção daquela dos antigos mestres do haikai compositores de hokku.

 

Introdução à tradução

 

         Nas edições japonesas, o poema é geralmente impresso como um verso único (uma só linha, às vezes na vertical, lida de cima para baixo). Ainda assim, é claramente distinguível a estrutura em três partes que sugere a tradução em três versos.

        Quanto aos aspectos formais do poema, toda adaptação é problemática e as possibilidades são diversas. Como o gênero oferece o desafio de desenvolver imagens dentro de uma forma fixa extremamente concisa e como a brevidade é marca característica dos poemas, o texto traduzido também segue uma espécie de modelo análogo que também tem como base uma estrutura 5-7-5. Esse padrão inclui na contagem as sílabas finais átonas ao mesmo tempo em que permite o uso de tônicas no fim do verso. Essa escolha produz um verso bem curto e que se aproxima um pouco mais da contagem japonesa de unidades rítmicas, chamadas de on (literalmente, “som”)[4]. Mesmo com a diferença de apresentação entre o texto em japonês e o texto em português, a forma utilizada aqui tenta produzir uma leitura que se aproxima da duração da leitura do texto em japonês.[5]

          Jogos sonoros como a aliteração, que na tradição ocidental costuma sugerir que o leitor estabeleça relações entre as palavras, não são especialmente significativos na composição dos poemas[6]. Eles acontecem na tradução de forma semelhante à que acontecem no texto original: subordinados ao sentido das expressões e à construção das imagens.[7]

         Outra marca essencial do gênero é a composição particularmente atenta à construção de imagens e à sequência dessas imagens. Por isso, as imagens e a ordem em que elas aparecem no texto são prioridades da tradução.

         A seleção foi feita com o objetivo de apresentar poemas dedicados a cada uma das estações. Ela apresenta exemplos que correspondem a certa ideia comum sobre haikai (a contemplação de uma imagem natural), exemplos que não correspondem, exemplos do uso de diferentes expressões que identificam uma estação, de fórmulas semelhantes em contextos diferentes, do bom humor, da reflexão introspectiva e de algum pensamento sobre a poesia. O início pelo outono é arbitrário, apenas compondo uma sequência que parte de alguma melancolia e seriedade, passa por uma primavera contemplativa, por um verão bem-humorado e termina com um poema muki, sem identificação sazonal.

         Como a seleção final passa também pelo resultado da tradução, ocorreu, a princípio por acaso, algo que não deixa de ser potencialmente interessante para o leitor: três poemas, que aparecem em coletâneas e edições de hokku, contêm desvios métricos do padrão (um 6-7-5, um 5-8-5 e um 5-5-7). Essas variações são reproduzidas na tradução e comentadas na seção posterior.

         Para o recorrente conflito na prática da tradução entre manter elementos da cultura de partida ou adaptá-los para aproximá-los ao leitor da cultura de chegada, não há aqui uma norma fixa. Cada poema sugere uma ou outra abordagem conforme as melhores soluções encontradas.

         A datação dos poemas é indicada por Barnhill (2004). 

 

Tradução

 

OUTONO

 

見送りのうしろや寂し秋の風

miokuri no / ushiro ya sabishi / aki no kaze

(1688)

 

Na despedida

as costas! Solitário

vento de outono.

 

旅に飽きてけふ幾日やら秋の風

tabi ni akite / kyō ikuka yara / aki no kaze

(1688)

 

Cansei da viagem

hoje faz quantos dias?

Vento de outono 

 

物いへば唇寒し秋の風

mono ieba / kuchibiru samushi / aki no kaze

(entre 1684 e 94)

 

Quem abre a boca

sente os lábios gelados.

Vento de outono.

 

INVERNO

 

冬の日や馬上に氷る影法師

fuyu no hi ya / bashō ni kōru / kagebōshi

(entre 1687 e 88)

 

O sol de inverno:

a cavalo congela

a minha sombra.

 

霜を着て風を敷き寝の捨子哉

shimo o kite / kaze o shikine no / sutego kana

(entre 1662 e 1669)

 

Veste geada

e se forra de vento

bebê na rua.

 

PRIMAVERA

 

蝶鳥の浮つき立つや花の雲

chō tori no / uwatsuki tatsu ya / hana no kumo

(entre 1684 e 1694)

 

Borboletas e

aves agitam voo:

nuvem de flores.

 

 なほ見たし花に明け行く神の顔

nao mitashi / hana ni ake yuku / kami no kao

(1688)

 

Quero ainda ver

nas flores no amanhecer

a face de um deus.

 

古池蛙飛び込む水の音

Furu ike ya / kawazu tobikomu / mizu no oto

(1686)

 

No velho lago,

o sapo pula dentro:

barulho d’água.

 

VERÃO

 

ほととぎす今は俳諧師なき世哉

hototogisu / ima wa haikaishi / naki yo kana

(entre 1681 e 1683)

 

Vozes das aves.

Nessas horas, um poeta

não tem mais mundo.

 

わが宿は蚊の小さきを馳走かな

waga yado wa / ka no chiisaki o / chisō kana

(1690)

 

Na minha casa

pernilongo pequeno

é o que ofereço...

 

五月雨に鶴の足短くなれり

samidare ni / tsuru no ashi / mijikaku nareri

(1681)

 

Chuva de verão:

perna de garça

agora fica curta.

 

SEM ESTAÇÃO

 

月花もなくて酒のむ独りかな

tsuki hana mo / nakute sake nomu / hitori kana

(1689)

 

Que lua, que flor

nada, bebo umas doses

aqui sozinho.

 

Comentários

 

miokuri no / ushiro ya sabishi / aki no kaze

Na despedida / as costas! Solitário / vento de outono.

 

            As imagens se acumulam em progressão. A primeira palavra, miokuri (despedida) estabelece o contexto (a partícula no pode ter um sentido de indicar o assunto ou pode ser possessivo, “as costas da despedida”, “por trás da despedida”).[8] Em seguida, ushiro (atrás, costas), talvez a imagem mais básica de uma despedida, seja dando as costas, seja vendo as costas de quem parte. Há aqui o uso de uma organização textual característica do hokku, com as partículas chamadas de kireji (palavra que corta). Elas indicam ênfase e marcam o fim do poema ou uma cesura. As mais utilizadas são ya (que aparece nesse caso) e kana (que costuma aparecer no fim dos poemas e receberá atenção no comentário ao quarto poema desta seleção). Ya enfatiza a imagem antecedente, divide o poema em duas partes e sugere que o receptor as relacione. Na tradução, o ponto de exclamação tenta reproduzir a cesura no meio do verso e a intensidade emocional provocada pela visão das costas. Solitário é o aki no kaze (vento de outono). A natureza aparece como um reflexo do corpo que agora recebe sozinho esse vento pouco confortável, reforço melancólico de sua solidão.

 

tabi ni akite / kyō ikuka yara / aki no kaze

Cansei da viagem / hoje faz quantos dias? / Vento de outono.

 

            Não estamos mais na despedida, mas “na viagem” (tabi ni). O poema aparenta ter uma unidade rítmica a mais que o tradicional (formando 6-7-5)10. O verbo akiru é “cansar-se”, não no sentido de fadiga física ou mental, mas de aborrecer-se ou perder o interesse em algo. A viagem aparece não como lazer ou diversão, mas como o caminho longo, percorrido aos poucos, que logo se torna fastidioso, quem sabe, como metáfora comum de qualquer atividade humana que se estende no tempo. Literalmente, a pergunta é formada por: kyô (hoje) ikuka (“quantos dias” ou “que dia”) yara (que pode indicar semelhança, “tal qual”, e alguma incerteza). O aborrecimento é resultado da repetição de um esforço e não há perspectiva de alívio imediato, porque os dias seguintes, como os anteriores, exigirão a continuação das atividades semelhantes às de hoje. Essa perspectiva é concluída com o vento de outono, seja ele um acréscimo melancólico às condições de viagem, uma triste hostilidade adicional do caminho ou um sopro de tédio.

 

mono ieba / kuchibiru samushi / aki no kaze

Quem abre a boca / sente os lábios gelados. / Vento de outono.

 

            Aqui começamos por uma condicional, que, literalmente, poderia ser traduzida por “se falar alguma coisa”. Em posição central, a consequência: o substantivo kuchibiru (“lábios”) modificado pelo adjetivo samushi (“frios”). Na coleção de Barnhill (2004, p. 38) esse poema é introduzido como um dito de sabedoria propondo que não se fale das falhas alheias e não se vanglorie das próprias virtudes. Nesse sentido, tudo aquilo que é dito pode se voltar contra quem fala, de modo que é mais sensato o silêncio. De todo modo, o desconforto ou a vulnerabilidade que o falador traz para si mesmo é representada imageticamente pelo frio, que acomete os lábios e leva ao conclusivo aki no kaze, “vento de outono”. O vento de outono ressalta que o resultado da má comunicação entre as pessoas, de se dizer o que não deveria ser dito, é a melancolia. A tradução busca se aproximar dos provérbios em português, com uso de “quem” onde se poderia se esperar o “se” e com a inserção de um verbo conjugado no presente, “sente”, aproveitando a sugestão sensorial do adjetivo. A expressão “abrir a boca”, além de expansão da imagem dos lábios, marca em português o sentido desse “falar” condicional (ieba) como algo negativo.

 

 fuyu no hi ya / bashō ni kōru / kagebōshi

O sol de inverno: / a cavalo congela / a minha sombra.

 

            Mais uma vez, na esfera da viagem e do trabalho, agora certamente enfrentando condições naturais ameaçadoras. O inverno (fuyu) abre o poema com seu dia (hi). As imagens seguintes se constroem como oposições ao calor e à luz, o que justifica a especificação de sentido do dia como “sol”. Aqui ya corta o fim do que seria o primeiro verso. Como, na sequência de imagens, o sentido é de corte, mas com sugestão de relacionar as duas partes formadas, essa relação pode ser traduzida com o uso de dois pontos. O segundo verso é formado por Bashô ni (“montado a cavalo”) e por kôru (congelar, intransitivo). O poema termina com a sombra (kagebôshi, ocupando toda a última parte). A imagem diz algo sobre o frio, capaz de congelar a sombra que já é por si só uma contraposição ao sol, mas é também a imagem do próprio cavaleiro e seu estado sob o insuficiente sol do inverno (quase como “eu, que me tornei uma sombra”).

 

shimo o kite / kaze o shikine no / sutego kana

Veste geada / e se forra de vento / bebê na rua.

 

            Shimo é a geada, como objeto (marcado pelo o) de kiru, vestir. Kaze é o vento. Shikine parece formado por shiki (forro ou esteira) e ne (dormir), ou seja, algo com o qual se forra o chão. Sutego é criança abandonada, o bebê largado pelos pais à própria sorte, sem nada. Nesse caso, em pleno inverno. Kana é um kireji (palavra que corta), que aparece muito em finais de poema, produzindo um fecho enfático, sugerindo uma reflexão ou intensidade emocional. Os elementos naturais aqui cumprem uma função peculiar, uma vez que sua hostilidade, na verdade, revela-se uma consequência da hostilidade do mundo humano.[9]

 

chō tori no / uwatsuki tatsu ya / hana no kumo

Borboletas e / aves agitam voo: / nuvem de flores.

 

            No original, borboletas (chô) e pássaros (tori) aparecem na primeira parte. Na segunda, o movimento dos dois tipos de animais é descrito: uwatsuki, como substantivo formado a partir de uwatsuku, (“estar inconstante”, “inquietar-se”) e tatsu, que tem o sentido de “levantar”. A construção é algo como “levanta o movimento agitado das borboletas e pássaros”. A imagem final, com hana (flor) e kumo (nuvem) é como a condensação imagética da revoada. Como uma manifestação da própria primavera, os passarinhos e borboletas se tornam cor em movimento no ar.

 

nao mitashi / hana ni ake yuku / kami no kao

Quero ainda ver / nas flores no amanhecer / a face de um deus.

 

            Nao (além disso, ainda, ainda mais) inicia a primeira parte, completada com mitashi, forma desiderativa do verbo miru, ver. Dessa vez o poema não se inicia com uma imagem, mas com a manifestação da curiosidade quanto às imagens que o mundo pode oferecer. Essa imagem desejada, antes de se dar a ver no poema, é contextualizada com outra imagem: “nas flores” (hana ni), com a “aurora” ou o “sol nascente” (ake) vindo (yuku). A última parte apresenta o objeto do desejo: o rosto (kao) de uma divindade (kami[10]). No desejo pela imagem, sugere-se a busca por um momento transcendental a partir do contato com a natureza e sua beleza[11]. Ou a experiência de um contato com algo além do mundo humano[12].

 

Furu ike ya / kawazu tobikomu / mizu no oto

No velho lago, / o sapo pula dentro. / Barulho d’água.

 

            O poema mais famoso e mais traduzido de Bashô começa projetando o seu cenário. Ike pode ser um pequeno lago natural ou artificial, mas sua caracterização como velho (furu), provavelmente afetiva, pode sugerir um lago ornamental. A partícula ya corta da montagem cenográfica para a ação, e temos, então, o sapo ou rã (kawazu) e o verbo tobikomu. Tatiane Sousa (2007, p. 76-7) explicita o sentido do verbo tobikomu como a junção dos dois verbos que o compõem: tobu (voar) e komu (entrar). O mergulho, esse voo para dentro do lago, tem como resultado o som (oto) atribuído à água (mizu) pela partícula no. James Hoyt (2011, p. 18-20) indica que, na poesia japonesa da época, o kawazu estava relacionado à estação da primavera e aparecia nos poemas acompanhado pela ação de emitir o seu próprio som: coaxar (recorrentemente indicado pelo verbo naku, como o som ou canto de vários animais). No fim, se é a percepção do som da água que permite recuperar todo o cenário e a ação apresentadas nas imagens anteriores, ou se esse som é apenas a conclusão de uma pequena cena de contemplação, temos, em qualquer das duas hipóteses, um ruído final que parece subverter as expectativas tradicionais.

 

hototogisu / ima wa haikaishi / naki yo kana

Vozes das aves. / Nessas horas, um poeta / não tem mais mundo.

 

            Hototogisu é a denominação (onomatopaica, como “cuco”) do cuco-pequeno (Cuculus poliocephalus), cuco asiático de canto apreciado.[13] O nome da ave corresponde a toda a primeira parte e traz em si também o seu canto e a audição deste, algo como “escuto o cuco”. O problema é que esse pássaro não sugere um canto bonito para um leitor brasileiro. É mais provável que traga à mente um velho relógio de desenho animado. Da segunda parte em diante, há um comentário bem humorado sobre o canto com uma imagem exagerada: ima wa (agora), haikaishi (mestre do haikai); naki (não há), yo (mundo) e kana. A segunda parte tem uma unidade rítmica a mais que o padrão (5-8-5)[14]. Nesse poema a natureza, fonte de inspiração constante, tem um valor estético reconhecido como superior à arte humana, a ponto de esvaziar sua necessidade. Entretanto, a perda de interesse pelos poetas ou a perda do interesse em compor ao escutar o cuco-pequeno, que sugere silêncio das pessoas perante a melodia natural, tem expressão enquanto poema que revela a experiência humana diante da natureza (e alguém poderia dizer que é exatamente esse o mundo do mestre do haikai).

 

waga yado wa / ka no chiisaki o / chisō kana

Na minha casa / pernilongo pequeno / é o que ofereço...

 

            O poema começa com waga, um possessivo (meu/minha) e yado, que pode ser uma residência, um alojamento, uma pousada, estabelecidos como o assunto (wa). A imagem seguinte é formada por ka (mosquito) e chiisaki (“pequeneza” do mosquito, pela atribuição do possessivo no), completando a segunda parte do poema. Por fim, uma terceira imagem, chisô, que significa uma cortesia que se oferece a alguém ou a refeição que se serve a um hóspede. O corte kana direciona a atenção a chisô, como se chamando a atenção para a situação do anfitrião (sua presença é marcada no primeiro verso pelo possessivo waga) que não tem a nada a servir para um hóspede ou visita que recebe, exceto a garantia de que ao menos os mosquitos são pequenos. Um só substantivo condensa o elemento social de receber alguém, a desculpa pela recepção imprópria (com uma sugestão à pobreza, pela falta do que servir) e a compensação bem humorada.

 

samidare ni / tsuru no ashi / mijikaku nareri

Chuva de verão: / perna de garça / agora fica curta.

 

            Do conjunto, essa é a tradução mais adaptada ao clima e fauna brasileiros, então é necessário apresentar as ressalvas. Traduzo samidare (literalmente: “chuva do quarto mês lunar”) como “chuva de verão”, mas a palavra indica, na verdade, as longas chuvas da estação chuvosa japonesa (tsuyu). Não cai com breves pancadas violentas, mas com entediante insistência que se estende por semanas antes do inicio do calor do verão. Apesar da diferente de qualidade da chuva que a imagem de samidare e “chuva de verão” sugerem, mantive a associação da chuva com a época úmida do ano. Também tsuru, o pássaro muito representado (mas em voo, pernas recolhidas) em formato de origami, não é exatamente uma garça, mas um grou (família Gruidae), ave de pernas (ashi) longas. A primeira parte estabelece o contexto, a segunda foca as pernas do grou e na terceira temos a ação: tornar-se (nareri) curto (mijikaku). O alagamento é sugerido sem ser diretamente mencionado. Assim, compõe-se a cena em que um dado natural essencial (ou, se não essencial, ao menos esperado), o comprimento das pernas da garça, é subvertido pela própria natureza.[15] A subversão do naturalmente esperado é realizada no próprio texto e é até mesmo sutilmente comentada. O que seria o segundo verso, que corresponde exatamente à perna do grou, não tem as sete unidades rítmicas esperadas, mas apenas cinco. O verso final explica o fenômeno da parte anterior e repõe as duas sílabas que integram o total de dezessete configuradas num formato 5-5-7.

 

tsuki hana mo / nakute sake nomu / hitori kana

Que lua, que flor / nada, bebo umas doses / aqui sozinho.

 

            A primeira parte introduz uma imagem com a lua (tsuki) e flor(es) (hana) também (mo), mas a primeira palavra da segunda parte quebra a expectativa negando a presença (nakute, “não há”). A ação na verdade é a de beber (nomu) sake, que pode ser o saquê mesmo, a bebida fermentada de arroz que no século XVII era bem popular e muito produzida, mas pode também ser uma palavra mais genérica para bebidas alcoólicas em geral. À negação bem humorada dos elementos naturais tradicionais da poesia e ao anúncio da bebida segue a palavra hitori (sozinho) e o corte reflexivo do kana, fechando o poema com um direcionamento à introspecção. O movimento do poema parece uma brincadeira com as imagens tradicionais e uma entrada na vida do humano isolado das paisagens, seja por dispensá-las pela bebida solitária ou pela falta de belezas apreciáveis.[16]

 

Referências

 

BARNHILL, David Landis. Basho’s Haiku: Selected Poems by Matsuo Basho, translated by, annotated, and with introduction by David Landis Barnhill, Albany: State University of New York Press, 2004.

HAMILL, Sam; SEATON, J. P. Chuang Tzu: ensinamentos essenciais. Traduzido e organizado por Sam Hamill e J. P. Seaton (tradução do inglês de Eduardo Pereira e Ferreira). São Paulo: Cultrix, 2005.

HOYT, James. Silkworms and Silverfish: Creeping Things in Haiku. Bloomington: Xlibris, 2011.

KITAGAWA, Joseph M. On Understanding Japanese Religion. Princeton: Princeton University Press, 1987.

SOUSA, Tatiane de Aguiar. Haikais de Bashô o oriente traduzido no ocidente. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) – Centro de Humanidades, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2007.

UEDA, Makoto. Basho and His Interpreters: Selected Hokku with Commentary. Stanford: Stanford University Press, 1992.

 

Notas

[1] Atualização com dois poemas extras do texto Dez poemas de Matsuo Bashô, publicado na revista Em Tese, v. 20, n. 2, 2014, p. 137-146.  

[2] Embora a proposta aqui seja apenas a tradução, por se tratar, em geral, de um gênero de familiaridade parcial para um leitor de língua portuguesa, incluo aqui uma pequena introdução informativa feita a partir de uma leitura de David Landis Barnhill (2004). Preciso admitir que não sou um especialista acadêmico da área, mas um leitor com interesse pela prática da tradução e do exercício poético. Por esse motivo, os comentários de leitores e avaliadores me foram especialmente úteis.

[3] Makoto Ueda (1992, p.17), ao informar sobre essa multiplicidade de nomes, menciona que era prática comum mudar o nome de uma criança ao longo da infância.

[4] Uma característica que pode causar estranhamento em quem lê o texto japonês transliterado esperando sempre o formato 5,7 e 5 sílabas é que sílabas longas como o “ô” (“o” longo, transcrito também “ō”, “ou”, “oo”) e ditongos, como “ai” podem contar como duas unidades. A consoante nasal “n” em final de palavra também pode contar como unidade por si só. Por isso eu utilizo “unidade rítmica”. Outro estranhamento, conforme apresentaremos adiante, é que o poema nem sempre segue esse formato.

[5] Para uma leitura corrente, as ligações vocálicas em português são consideradas como sílaba única, conforme a métrica tradicional.

[6] Conforme me advertiu um avaliador anônimo.

[7] E, em português, com manutenção apenas da repetição, não necessariamente da repetição de um mesmo som específico.

[8] Transmite-se a anotação de que se trata de um poema sobre a partida de Yasui, um discípulo (cf. BARNHILL, 2004, p. 81, 203).

[9] Observa-se nesse poema a alusão a um waka de Fujiwara no Yoshitsune (1169-1206) que apresenta uma queixa sobre dormir na noite gelada só com um forro frio, tendo que se cobrir com as mangas de uma roupa leve, e sozinho. A situação do bebê abandonado estabelece outra escala de desamparo (Cf. BARNHILL, 2004, p.160-1).

[10] Conforme explica Joseph M. Kitagawa (1987, p.120-1), kami são seres divinos ou sagrados, associados a elementos naturais (tanto vivos, como animais, quanto inanimados), que possuem qualidades ou poderes extraordinários e são dignos de reverência.

[11] Joseph M. Kitagawa (1987, p.128) acrescenta que no pensamento Xintoísta “o mundo é permeado pela natureza sagrada, de modo que cada montanha, rio árvore, pedra e ser humano é potencialmente um objeto de veneração” (p.128).

[12] David Landis Barnhill (2004 p.197-8) comenta que Bashô, em seu livro de relatos de viagem Oi no Kobumi (que pode ser traduzido como Notas da Mala, porque oi é uma caixa de madeira levada nas costas) comenta sobre esse poema, composto a respeito do monte Kazuraki. Bashô diz que o que se contava na região é que o deus (kami) ali presente, Hitokotonushi-no-kami, tem um rosto horroroso e, por isso, as pessoas o insultavam. Nesse caso, a curiosidade do poeta passa a incluir, provavelmente com bom humor, a busca pela feiura especial da divindade que parece habitar um lugar belo ou desejo de reverenciar essa divindade propriamente.

[13] Seu canto pode ser escutado nos seguintes links: https://www.youtube.com/watch?v=Zm9-TaWCWRM e https://www.youtube.com/watch?v=iH6UAfbDsP8 (acessados no dia 16 de junho de 2020) ou procurando por ホトトギス.

[14] Seria uma indicação do mestre do haikai que perde a linha ou só a forma a serviço da imagem e da ideia?

[15] Makoto Ueda (1992, p.73) transmite comentários de que se trata de uma resposta (bem humorada) a um trecho do Zhuangzi (antigamente transliterado Chung Tzu), um dos textos fundadores do Taoísmo no século IV a.C. É o seguinte trecho: “As pernas do pato são curtas, mas se você as estica, o aflige. As pernas do grou são compridas, mas se você as encurta, o entristece. Assim também é a natureza: o comprido nada tem que deva ser quebrado; o curto nada tem que deva ser esticado.” (HAMILL;SEATON, 2005, p.53). Para Bashô o mundo não parece tão simples, repleto de variações possíveis e condições específicas.

[16] O poema é transmitido como comentário sobre uma pintura que representa um homem bebendo (cf. BARNHILL, p.87).

 

 

 

Gustavo Frade 

Nascido em 1987, possui graduação em Letras (2009), mestrado (2012) e doutorado em Estudos Literários (2017), todos realizados na UFMG. Desde 2015 é professor de Estudos Literários, Literatura Grega e Língua Grega na UFJF.

Correio eletrônico: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

Link Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8788212007018941 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Como citar:

FRADE, Gustavo. 5% Arquitetura + Arte, São Paulo, ano 15, v. 01, n.19, e160, p. 1-7, jul./dez./2020. Disponível em: http://revista5.arquitetonica.com/index.php/magazine-1/arquitetura/o-realismo

 

Submetido em: 2020-09-03

Aprovado em: 2020-09-21

 

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