Uma herança urbanística e ambiental

Categoria: Ciências sociais aplicadas: Arquitetura

Resumo

Este trabalho traz uma reflexão sobre uma herança cultural que veio sendo implantada desde o período colonial: o paradigma urbanístico e ambiental das cidades luso-brasileiras. Focaliza controvérsias encontradas na literatura, quando Marx (1991) sublinha que nunca existiu uma codificação colonial portuguesa, mas normas e procedimentos eclesiásticos que interferiam no desenho urbano; Delson (1997) enfatiza que a “consabida” falta de planejamento na fundação das cidades brasileiras era um mito, pois Tomé de Souza trouxe consigo uma planta traçada. Santos (1959) sublinha o fato de existir este “plano geométrico” para traçar a cidade. Reis Filho (2000) destaca a proximidade entre a política francesa no Canadá e a de Portugal no Brasil relacionada aos ambiciosos programas de urbanização do período Pombalino no Brasil. Frente a essas colocações a pesquisa[1] procurou respostas às perguntas: as normas eclesiásticas se relacionavam com as decisões da coroa real? No que consistia a autonomia municipal e que relação guardava com a urbanização?

  1. Introdução

A literatura apresenta controvérsias quanto à fundação de vilas e cidades luso-brasileiras. Três autores trouxeram contribuições fundamentais: Marx (1991), Delson (1997) e Reis Filho (2000). Marx (1991) destaca a existência de normas e procedimentos eclesiásticos interferindo no desenho urbano, enquanto afirma nunca ter existido uma codificação colonial portuguesa. Delson (1997) se contrapõe dizendo que essa consabida afirmação de ausência de planejamento na fundação das cidades era um mito, pois o primeiro governador geral do Brasil já trouxera consigo uma planta ou plano geométrico para a cidade de Salvador, a primeira capital do Brasil, trazendo também em  1549 o modelo institucional e administrativo português, com relação ao poder municipal. Por sua vez, Reis Filho (2000) já aponta no século XVIII, a existência de um ambicioso programa de urbanização no período Pombalino. À primeira vista, essas controvérsias confundem o leitor que, diante dessas argumentações, pode pensar que não houve planejamento urbano e ambiental, enquanto este se fez presente já nas primeiras cidades luso-brasileiras.

Por sua vez, as primeiras vilas e cidades do nordeste, segundo Delson (1997) foram o resultado de uma política colonizadora, em que a coroa portuguesa objetivava ocupar o território e diminuir a influência dos latifúndios que criara logo após o descobrimento ao instituírem as capitanias hereditárias. É que precisando controlar o território, não podia ver seu poder sendo solapado pelos poderosos coronéis do sertão, nem podia se submeter a um único trajeto por mar para se locomover entre cidades. Precisava construir estradas entre esses povoamentos e controlar, tanto os resultados da produção, como o estabelecimento de vilas e cidades. Havia assim uma política de gestão abrindo espaço ao planejamento urbano e ambiental, criando vilas e cidades e um sistema viário que complementava e enriquecia as rotas de comunicação via marítima e fluvial. Nasceu desse modo, a rede urbana do país que, no nordeste, relacionava Salvador, Juazeiro, Oeiras e São Luís, e, posteriormente, Aquiraz, Fortaleza, Icó. Esta rede urbana nascente permitia vigiar o tráfego regional, coibir o contrabando e assegurar a permanência e domínio português no território. Mas em contraposição a esse planejamento, ocorreram outros, feitos por boiadeiros e aventureiros que formaram os conhecidos arraiais, seja procurando as minas de ouro e pedras preciosas, seja organizando o espaço para suas boiadas. Segundo Teixeira (2000), pode-se falar em duas componentes da ocupação do território, a erudita, resultante de uma gestão pública da metrópole portuguesa e outra, a vernacular, efetivada livremente pela população. Esta última forma de ocupação, no entanto, acabou sendo remodelada pela coroa real, seja após incêndio, ou inundação ou por ordem da câmara local, como ocorreu no arraial de Ouro Preto, ou ainda, sob as ordens pombalinas de “correção de erros”, de reparar casas e murar pomares (Delson, 1997), isto é, colocar essas ocupações conforme as exigências de planejamento urbano e ambiental (ainda que na época não se usavam esses palavras) prescritas pela coroa portuguesa. Em termos urbanísticos cabia alinhar as construções e uniformizar as fachadas, por exemplo, e do ponto de vista ambiental, essa preocupação era referida pela não ocupação de áreas alagadiças e inundáveis, pela preocupação com a aeração e a localização de diferentes atividades, como o mercado de peixe, que produzia imundícies e por isto devia se situar junto ao mar ou rios para que pudessem ser mais facilmente limpo, e, também, pela delimitação do rossio (terreno público de uso coletivo).

  1. O planejamento das cidades e a Igreja

Como se observa, não se pode dizer que as cidades luso-brasileiras foram construídas à margem do planejamento urbano e ambiental. As normas e procedimentos eclesiásticos organizaram a fundação de vilas e cidades, sendo possível distinguir seus estágios de desenvolvimento. Conforme Marx (1991), as moradias se organizavam em torno de uma capela, podendo-se considerar este o primeiro estágio da fundação das cidades. O segundo se caracterizava pela visita de um pároco a essa capela, que depois se tornava a igreja matriz, formando uma paróquia ou freguesia. No terceiro estágio esta ocupação se completava quando a vila atingia a autonomia municipal. Assim cresciam as cidades, sem adotar o modelo das fundações espanholas que repetiam a mesma planta urbana, com poucas modificações: “uma praça central – a Praça Maior ou das Armas, que tinha a cidade à sua volta, com suas vias retas, bem alinhadas e se cruzando em ângulo reto, constituindo uma grelha ou tabuleiro de xadrez, com quadras divididas em porções iguais ou quase iguais” (Marx, 1991, p.59).

Porém, mesmo sem um modelo repetitivo, as fundações de vilas e cidades luso-brasileiras se orientavam por princípios de planejamento urbano e ambiental: ocupavam locais topograficamente dominantes, os topos de colinas, cujos acessos difíceis lhes asseguravam melhor defesa de invasores. Assim é que, tanto Marx (1991) como Teixeira (2000) e Reis Filho (2000) mostraram que a ocupação urbana começava nas cumieiras das colinas e, acompanhando as cotas do terreno se estendiam pelas ladeiras a pique. Essa orientação ocorria devido à procura de lugares sadios, de bons ares e com abundância de água. Além disso, era preciso ter condições para o funcionamento de um porto e seguir as “normativas” das “traças e amostras” vindas de Lisboa. Havia um cuidado em localizar a igreja em posição topograficamente privilegiada, em locais altos, arejados e sem umidade, definindo o largo: um espaço público aberto que era formado pelo adro da igreja e as áreas livres da cidade em formação. A essa preocupação ambiental seguia-se outra, a urbanística, ao prever que as casas se situassem em certa distância da igreja, formando um caminho livre de ocupação, para que as procissões pudessem passar em volta. Antes de 1580, segundo Reis Filho (2000, p. 126), todas as vilas e cidades “foram assentadas sobre colinas para que facilitassem sua defesa pela altura e o controle das vias de acesso, principalmente as marítimas e fluviais. Nos últimos anos do século XVII, a preferência já recaia sobre sítios planos”.

Observa-se que havia uma articulação que se pode dizer exemplar, no relacionamento dos traçados das cidades com particularidades geográficas. Havia também, conforme Avellar e Taunay (1956) uma conformação das formas administrativas e jurídicas existentes na península ibérica na época romana e também dos visigodos e árabes, com a adoção da forma administrativa municipal no Brasil, incluindo características do município romano e do conventus vicinorum germânico. Estes eram assembléias públicas de vizinhos, compostas por homens livres que desempenhavam funções judiciais, policiais e administrativas. Fundava-se assim uma urbs, concomitantemente a uma civitas, estruturando-se uma participação da comunidade por meio desse concelho municipal. Havia então uma limitação do poder gestor na medida em que crescia a importância dos concelhos nas decisões do reino e seus representantes passavam a participar das cortes – clero, nobreza e povo – que eram convocadas para decidir sobre questões importantes (Avellar e Taunay, 1956, p. 37).

Quanto à gestão pública, no período de 1550 a 1808 praticamente não havia no Brasil um registro dos atos normativos (Martins Filho, 1999), mas esses registros eram feitos em Portugal, sendo que, tanto as normas jurídicas gerais portuguesas como as específicas da administração, que se referiam ao território brasileiro, observavam as ordenações do reino. Estas relacionavam as compilações das leis vigentes e se constituíam na base do direito em vigor. Incluíam, portanto, os Regimentos a que os governadores gerais e os vice-reis do Brasil estavam submetidos e pelos quais podiam tomar medidas oficiais nas capitanias então instituídas. Ora, essas normas refletiam a vontade do rei e o interesse da cidade. Por isto estavam claramente redigidas nas cartas régias. Nestas os reis concediam privilégios aos povoados existentes, regulando-os juridicamente, ou ordenavam a construção de novas vilas e cidades. Estas cartas régias, portanto, entre outros, direcionavam os projetos urbanísticos e ambientais, determinando os condicionantes que deviam ser respeitados, como o caminho das águas servidas e das chuvas.

O paradigma urbanístico e ambiental era assim uma criação do reino, imposta a todo o país, bem como a suas colônias de além mar. Carita (1999, pp. 85-88) conta que, para que esse paradigma fosse “obedecido”, os contratos e escrituras deviam incorporá-lo, isto é, registrá-lo. Assim foram instituídos os regimentos oficiais das cidades, vilas e lugarejos do reino e estes obedeciam a um discurso imperativo do rei que decretava o funcionamento municipal com um regimento que permitia o enfrentamento de situações diversas, sem que se perdesse a lógica fundamental do paradigma. Em termos urbanísticos moldava uma geometria e uma racionalidade estrutural urbana, com bases na forma de um quarteirão retangular. Em termos ambientais, as povoações deviam se localizar perto de rios navegáveis e as atividades poluidoras por natureza, como matadouros, peixarias ou oficinas que causavam imundície e mau odor, deviam situar-se em locais que mais facilmente permitissem conservar a limpeza e a saúde do ambiente.

As normas e procedimentos eclesiásticos que ditavam as “regras” do desenho urbano, como diz Marx (1991), imperavam em toda a península ibérica, também na gestão municipal (Avellar e Taunay, 1956, pp. 22-25). O direito latino fruía em qualquer cidade com uma constituição municipal (similar ao que hoje é a lei orgânica do município), e tinha por poder supremo a cúria. Esta situação advinha da influência direta do cristianismo na gestão municipal, em que o clero promovia reuniões (conventum clericorum) para gerir suas paróquias e dioceses. Esta administração clerical formou-se desde o período de transição entre o direito romano e o direito costumeiro gótico, quando foi aprovado o Líber Judiciorum baseado nos princípios humano-cristãos do direito canônico. As atas dos concílios da época mostram que os teólogos juristas procuravam “formar” a consciência dos governantes de modo que se sentissem responsáveis por atuar em benefício do povo.

Por sua vez o poder eclesiástico se expressava relacionado com os outros poderes, levando a um resultado de trabalhos conjuntos “longamente estabelecidos e sobre o que houvesse consenso, que os juristas consideravam como de obediência obrigatória, tanto mais do que a lei do rei” (Hespanha, 2001, p. 128). Havia assim uma limitação ao poder do governo, imposto por esse controle difuso e quotidiano dos “usos de vida” (Hespanha, 20001, p. 129).

As cartas ou forais de povoações também refletiam o poder eclesiástico, pois podiam ser régios ou de senhorio (eclesiástico ou secular), neles constando a autorização real. Esse poder eclesiástico aumentou com a reconquista do território de Portugal ao expulsar os mouros da península ibérica no século XIII. É muito provavelmente por isto que Marx (1991) afirma que as normas eclesiásticas interferiam no desenho urbano, tanto mais que esse poder da igreja era preponderante em toda a cultura ocidental e, quando o Condado Portucalense se desmembrou do Reino de Leão (Espanha), a monarquia portuguesa reconhecia a origem divina do poder e primazia da igreja (Avellar e Taunay, 1956, p 34). Desse modo, esse poder da igreja coexistia com a soberania política-administrativa da sociedade, ou representava politicamente a administração. Influía por isso no paradigma urbanístico e ambiental que se difundia no reino e em suas colônias. Mais ainda, destaca-se que essas normas e decisões eclesiásticas estavam umbilicalmente relacionadas às decisões da coroa real. Aplicava-se desse modo um paradigma urbanístico e ambiental realizando um planejamento urbano flexível que permitia uma adaptação caso a caso, em função das condições locais existentes.

Nesse sentido a colonização portuguesa seguia um planejamento com origem no Período Manuelino, em que as Ordenações refletiam a formação de uma mentalidade diferenciada daquela do urbanismo islâmico de cunho medieval. Ocorria então um aumento na capacidade de abstração e a formação de uma noção de valor estético dado pela uniformidade do conjunto de fachadas das edificações que constituíam as ruas, revelando assim a racionalidade da estrutura da cidade, regulável por imposições, ordenações e cartas régias que formavam a legislação da época moderna. Essa nova mentalidade desenvolvia-se também em uma nova ordem econômica ditada pelo império português mercantilista, próspero e poderoso. Essa flexibilidade do sistema que funcionava como uma instituição administrativa e não como um modelo formal, paulatinamente prevaleceu e se converteu em modelos formais mais explícitos como um reflexo da centralização de poder que ocorreu pari e passu com o mercantilismo.

Mesmo assim, observa-se nas normas e regulamentos que a vontade do rei e o interesse da cidade prevaleciam. A fundação desta estava claramente redigida nas cartas régias. Também se verifica que os impostos garantiam os fundos necessários para a administração e os parâmetros de controle da construção civil. Nota-se na Imposição dos Carros que Carreiam na Cidade, a cobrança de impostos e no Regimento dos Carpinteiros, Pedreiros e Aprendizes e Braceiro e Cal e Telha, Tijolo e Tojo e Madeira e Pregadeira, o controle da construção da cidade. Esta Imposição Manuelina “Dos Carros que Carreiam na Cidade” vigorou até os fins do século XIX e cobrava imposto pelo transporte de carga, como também da pavimentação e projetos específicos de arruamentos, chafarizes e funcionalidade. E o Regimento Manuelino “Dos Carpinteiros, Pedreiros e Aprendizes e Braceiro e Cal e Telha, Tijolo e Tojo e Madeira e Pregadeira” trazia os parâmetros para controlar as atividades relacionadas com as construções nas cidades, bem como o uso de materiais nessas obras, além de trazer regras sobre a força de trabalho do setor. Outras normas ainda uniformizaram os pesos e medidas, reformularam os forais e estabeleceram os registros dos oficiais das cidades, isto é, não só de Lisboa, mas de todo o reino e suas conquistas ultramarinas, vale dizer, também no Brasil. Havia assim, uma política urbana que procurava imprimir um tipo de comportamento social, controlando o território com projetos urbanísticos e ambientais adaptáveis aos sítios e suas condições locais. Mas como essa política urbana era implantada?

  1. O município e sua autonomia

Com esse paradigma herdado, herdou-se também o município como forma administrativa, mostrando, já naquela época a importância de ações locais (ou municipais). Observa-se que no Período Manuelino o paradigma urbanístico e ambiental criado em Lisboa em 1499, com imposições, regimentos e outras normas, como se observou, foi imposto a todas as cidades, vilas e povoados do reino, chegando também ao Brasil. Relativamente ao planejamento urbano com implicações ambientais, talvez a Provisão de 17 de julho de 1499 tenha sido a mais importante, pois aboliu a antiga lei medieval, ordenando a demolição dos balcões da cidade de Lisboa e impedindo que o andar superior se salientasse em sacada sobre o andar inferior e se projetasse, ocupando com suas estruturas grande parte das ruas públicas, dificultando a segurança e o controle de incêndios. Segundo Carita (1999, pp. 85-88), para que isso ocorresse e de fato a Imposição fosse observada, os contratos e escrituras deviam incorporar esse paradigma, registrando-o. Em termos de gestão pública dessa época, houve a definição das incumbências dos vereadores e oficiais mecânicos e o senado da câmara passou a contar com um documento que lhe deu o poder de legislar sobre os assuntos da cidade, sem a intervenção do Desembargo do Paço. Nota-se que, com um discurso imperativo, o rei decretava o funcionamento municipal. Os forais eram regulamentos para se administrar as terras conquistadas em consonância com a instituição dos regimentos oficiais das cidades, vilas e lugarejos do reino. Adotava-se assim um modelo de regimento que permitia enfrentar situações topográficas e territoriais diversas, sem que se perdesse a lógica do paradigma urbanístico e ambiental. Este procurava moldar uma forma geométrica e uma racionalidade estrutural para a cidade, com base na ortogonalidade, com a redefinição dos arruamentos, seu cordoamento (medir com cordas), uniformização das larguras de vias e travessas perpendiculares e de comprimentos das divisões dos terrenos, com demarcação da porção destinada ao rei. Formava-se assim um assentamento urbano com uma grelha viária em espinha de peixe, cuja organicidade revelava uma flexibilidade de adaptar-se ao local. Nesse paradigma de ocupação urbana dos portugueses, já claro em 1499 para Lisboa e que também foi aplicado nas cidades brasileiras, começa-se a se distinguir uma hierarquia de vias e travessas e a formação de uma mentalidade urbanística, em que todas as partes da cidade se submetem ao todo.

O sistema municipal aqui adotado era uma estrutura administrativa do direito português, que perdurou até 1824 (Avellar e Taunay, 1956, p. 21). No entanto, essa estrutura administrativa não se organizava em bases urbanas, como na Europa das cidades livres do domínio feudal, mas sim englobava áreas rurais e urbanas, na grande maioria dos municípios, aquelas muito maiores que estas, ainda hoje.

Destaca-se que para um núcleo urbano era importante obter sua autonomia como município, quando possuía, então, direitos e deveres administrativos e jurídicos. Para a formação de um município, nesses primeiros anos de colonização do país, era-lhe concedida uma gleba como seu patrimônio, ou de seu concelho que devia administrá-la e preservá-la. Também, possuir uma igreja matriz era uma condição necessária para que a comunidade pudesse ser declarada um município. Era preciso ainda uma casa de câmara e cadeia e o pelourinho. Estas instituições eram o símbolo da administração municipal e eram citadas nas cartas régias, como marcos para se ter alvarás e autos de ereção, direções e medidas da área comum: o rossio – seu logradouro público – cuja extensão e contorno eram determinados no ato da criação do município. O rossio era então uma área contígua à cidade mormente amuralhada que o protegia juntamente com a cidade.

O rossio era usado para a municipalidade obter um rendimento, embora fosse de uso coletivo como logradouro público, no entanto, era uma área aberta a todos. E pelas normas lusas a forma ideal do rossio era geométrica, de um quadrado, nem sempre possível de se implantar devido às características locais.

Esse rossio gerido pelo município (por seus vereadores e juízes ordinários) advinha de uma tradição medieval regulamentada pelas ordenações lusitanas. Era então um espaço desocupado usado para várias finalidades, pelos moradores, seja para pasto de animais, coleta de madeira para lenha, plantio, seja ainda como área de reserva para expansão da vila. Neste caso eram feitas concessões de terras, chamadas datas ou dadas de terras urbanas - para casas urbanas, sítios ou chácaras – feitas pelo parcelamento do solo pertencente ao município (Marx, 1991, pp. 68-71).

Tanto no caso das concessões tipo sesmarias – de terras rurais – como nas das datas existia o risco de perder a concessão, caso as exigências de ocupar e beneficiar o chão recebido em concessão, não fossem atendidas, em determinado prazo.

Reis Filho (2000, p. 117) mostra que “o rossio era uma parcela do terreno ou território de uma vila ou cidade, utilizada para atender ao seu crescimento, para recolhimento de lenha e pastagens de animais pertencentes aos moradores, em especial os animais de transporte”. Para Marx (1991, p.55) o rossio servia para “área comum para fruição comum (de onde vem logradouro, visto seu sinônimo, de lograr ou fruir), mas importante área municipal da câmara (...). Crucial porque engendrava também o espaço público e o privado, por meio de arruamento ou da expansão da cidade”. Mais ainda, o rossio “era concedido de forma semelhante às sesmarias, embora fosse a título perpétuo e para uma instância de governo”.

Nessa forma peculiar de organizar as cidades, estavam presentes também as preocupações ambientais. É que as datas de terra deviam ser dispostas (estruturadas) de modo que o escoamento das águas dos terrenos fosse eficiente, da testada para trás, sempre que possível em ângulo reto, ortogonal à rua ou acesso de frente. Também, a lógica de implantação das datas de terra, para cima ou para baixo da via, atendendo ao escoamento das águas, necessidades de acesso, obtenção de água potável e de escoamento das águas servidas. Daí a forma urbana em ruas e travessas ortogonais a elas, acompanhando as cotas do relevo, colina abaixo. Preocupações como essas podem ser associadas às legislações ambientais e urbanísticas, ou ainda, serem entendidas como medidas sanitárias, pois naquela época ainda não se fazia referência a questões ambientais. Observa-se assim, como registra Marx (1991, p. 84), que a partilha das terras rurais (sesmarias) era feita pelo reino e que a partilha das terras urbanas era feita pela municipalidade. E que os municípios brasileiros receberam uma verdadeira lei orgânica, com a Carta de Lei de 01 de Outubro de 1828.

Assim, como é possível associar as preocupações acima com uma gestão ambiental, urbanística e sanitarista, pode-se também associar o processo de distribuição de terras urbanas (concessão) e a lógica de implantação de vilas e cidades (municípios), com o processo de adensamento e expansão. A lógica de organização da trama urbana, iniciava-se com a localização da igreja matriz, o adro como espaço urbano vazio entre esta e a ocupação, outros adros de irmandades, e a localização da casa de câmara, cadeia e pelourinho e do rossio. Por sua vez, todos esses equipamentos podem ser associados ao planejamento urbano. Observa-se assim, como diz Delson (1997, pp. 9-16), que os portugueses utilizaram princípios essenciais do planejamento urbano, aplicando-os no estabelecimento da rede urbana de suas cidades.

  1. Conclusões

Como principais considerações, sublinham-se uma vez mais as observações antes colocadas de que as vilas e cidades luso-brasileiras foram planejadas de acordo com a herança recebida, seguindo um paradigma urbanístico e ambiental específico do povo lusitano. Ou seja, diferentes daqueles usados por seus vizinhos na península ibérica, os espanhóis. No entanto, observa-se que a herança municipalista enquanto modelo institucional e legal era adotado na Espanha desde a época dos reinos de Castela e Leão.

Os padrões portugueses se apoiavam num plano diretor bastante amplo, genérico e flexível, de modelo retilíneo e na malha ortogonal. O código de planejamento permitia imprimir ordem e simetria, ruas em linha reta com largura uniforme, prevendo pomar junto às casas, bem como fachadas uniformes dos edifícios e um largo central.

Como foram impostos pela metrópole – Portugal -, não há como não reconhecer o paradigma urbanístico e ambiental dos portugueses. Esse paradigma associava normativas urbanísticas e ambientais com gestão do território, abrangendo medidas tributárias e de expansão da ocupação do território, muito além daquele que tinha sido acordado pelo tratado de Tordesilhas, com a intermediação papal. Essas medidas tributárias eram devidas à produção agrícola-pecuária, exploração de minérios preciosos e mesmo devido à circulação pelas estradas então criadas e, concessões de sesmarias, datas de terras, herdando ainda a forma de administrar a partir da criação de municípios.

A gestão portuguesa no território brasileiro previa também, como uma medida de planejamento urbano e regional, (embora não se usassem esses termos), a renovação dos centros urbanos já existentes, com a aplicação de planos diretores urbanos, e a formação de novas vilas que pudessem preservar e defender as áreas sulinas e a oeste de invasões espanholas. Essa ação regional se fundamentava no interesse da Coroa em ter seu poder político reconhecido pelas comunidades dessas cidades, mantendo a ordem e recolhendo os impostos oriundos da produção local. Para tanto essa política contava, de um lado, com o domínio português sobre o território, e de outro, com o reconhecimento e aceitação, pela população das comunidades locais, dessa soberania portuguesa. Estabeleceram, portanto, uma “colonização subsidiada”, em que estimulavam a imigração de açorianos e sua fixação no local, pois, estes traziam a cultura européia, que era entendida como “civilização”. Para tanto, esses imigrantes eram assistidos pela coroa portuguesa, que, por força de instruções do regimento de 1747, previa uma ocupação sedentária do território. Este era definido por um traçado ordenado de ruas de 30 pés de largura, praça quadrada com 500 palmos, traçado esse que imprimia um modelo de uniformidade e ordem, com espaços para pomares-hortas entre as casas e atrás delas, moldando uma perspectiva grandiosa (Delson, 1997).

Como se pode observar das ações administrativas, tanto de Portugal, como de seus representantes no Brasil, o planejamento urbano e regional foi o principal instrumento utilizado, principalmente na gestão de D. José I (1750 a 1777), quando o Marquês de Pombal, (Sr. Sebastião José de Carvalho e Melo), passou a cuidar do planejamento e fundação de cidades no Brasil, impondo os paradigmas urbanísticos e ambientais lusitanos. Nesse período foram interrompidas as contribuições dos jesuítas para a política da coroa portuguesa, pois estes se opunham a essa política (1759). Pombal, com “punhos de ferro” realizou uma avaliação da “qualidade” das comunidades existentes, bem como decidiu sobre a localização de novas cidades e envolveu os indígenas, transformando-os em súditos da coroa, pois até então eram ignorados. As formas de gestão foram então aperfeiçoadas e Pombal iniciou um programa de “correção de erros” encontrados nos núcleos urbanos mais antigos, de modo a adequá-los ao paradigma urbanístico e ambiental implantado no país.

Observa-se finalmente que, nesta herança, a política urbana luso-brasileira unia teoria e prática, num planejamento urbano flexível, pois era adaptado a cada situação local. Com essa política estendeu-se o território muito além da linha imaginária divisória de Tordesilhas, entre as terras de Espanha e Portugal na América do Sul, ocupando-se o território com vilas e cidades, tornando portuguesa aquela região.

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[1] As autoras respectivamente participaram da Pesquisa desenvolvida na Universidade Presbiteriana Mackenzie sobre a coordenação de José Geraldo Simões Júnior, com verba do Fundo Mackenzie de Pesquisa, Janeiro de 2005 a Fevereiro de 2006 e de Seminário realizado em Outubro de 2005, para apresentação dos resultados parciais da pesquisa.

Gilda Collet Bruna e Eunice Helena Sguizzardi Abascal

Universidade Presbiteriana Mackenzie

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