MODELOS CONCEITUAIS DE PERCURSO E CIRCULAÇÃO NO PROJETO DE ARQUITETURA

Categoria: Ciências sociais aplicadas: Arquitetura

ANA TAGLIARI

Resumo

Este artigo se propõe a divulgar resultados de uma pesquisa iniciada em 2009, e em desenvolvimento de suas várias etapas, que analisa projetos com foco no sistema e elementos de circulação. Foram selecionados projetos para análise da circulação e a relação com conceito, programa e partido. As análises dos projetos foram realizadas por meio de levantamento bibliográfico, levantamento gráfico a partir de fontes primárias, visitas, análises por desenhos e fotos.

A partir da pesquisa realizada foram identificados modelos conceituais de percurso em momentos distintos da história da arquitetura. Neste texto, apresentamos uma síntese dos conhecimentos teóricos gerados nesta pesquisa, que relaciona Teoria e Projeto de arquitetura, com ideia original da análise criativa do projeto de arquitetura a partir do sistema de circulação e seus elementos, como estruturador do partido arquitetônico. 

Palavras-chave: Sistemas de circulação; Modelos conceituais de percurso; Elementos de circulação; Partido arquitetônico; Análise de projeto.

Abstract

This paper aims to reveal results of a research originated in 2009, and in development of its several stages, that analyzes architectural projects focusing on the circulation system and its elements. Some projects were selected for analysis of circulation system and the relationship with concept, program and partii. The analyses of the projects were carried out over bibliographical review, graphic data from primary sources, visits, analysis by drawings and photos. From the research carried out, conceptual models of movement were identified in different moments in the history of architecture. In this text we present a synthesis of the theory knowledge generated in this research, which establish relations between Theory and Project of Architecture, with original idea of the creative analysis of the architecture project from the circulation system and its elements, as a fundamental structure of the architectural partii.

Keywords: Circulation system; Conceptual models of movement; Elements of circulation; Architectural partii; Analysis of project. 

Resumen

Este artículo se propone a divulgar resultados de una investigación iniciada en 2009, y en desarrollo de sus varias etapas, que analiza proyectos con foco en el sistema de circulación y sus elementos. Se seleccionaron proyectos para análisis de la circulación y la relación con concepto, programa y partido. Los análisis de los proyectos fueran realizados por medio de levantamiento bibliográfico, levantamiento gráfico a partir de fuentes primarias, visitas, análisis por dibujos y fotos. A partir de la investigación realizada se identificaron modelos conceptuales de movimiento en momentos distintos de la historia de la arquitectura. En este texto presentamos una síntesis de los conocimientos teóricos generados en esta investigación, que relaciona Teoría y Proyecto de arquitectura, con idea original del análisis creativo del proyecto de arquitectura a partir del sistema de circulación y sus elementos, como estructurador del partido arquitectónico.

Palabras clave: Sistemas de circulación; Modelos conceptuales de camino; Elementos de circulación; Partido arquitectónico; Análisis de proyectos. 

Introdução

A pesquisa aqui apresentada, vinculada ao Grupo de Pesquisa “Arquitetura: Projeto, representação e análise” (Unicamp/CNPq), surgiu inicialmente em 2009 a partir das aulas de Projeto de Arquitetura na graduação, e do interesse de se criar um material didático para estudantes, envolvendo análise de projetos e o entendimento do partido arquitetônico, a partir do estudo sistemático dos elementos e dos sistemas de circulação. Alguns projetos foram selecionados para análises e visitas.

A ideia de se investigar o tema da circulação e movimento no tempo não é novidade. Importantes pesquisas são conhecidas envolvendo esse amplo tema, com diferentes abordagens e objetivos. Desde pesquisas desenvolvidas por filósofos, artistas e também arquitetos. Com enfoques funcionais, objetivos, teóricos ou subjetivos. Gilles Deleuze, Walter Benjamin, Le Corbusier, Bernard Tschumi, Helio Oiticica, apenas para citar alguns. Intuitivamente, esse tema pertence ao universo de pesquisa do arquiteto e podemos observar que está mais fortemente relacionado ao período moderno, com diferentes enfoques e contribuições.

A pesquisa aqui proposta tem foco na análise de projeto, e prevê critérios de investigação organizados para cada tipo de programa. Projetos e obras premiadas de arquitetos como Frank Lloyd Wright, Le Corbusier, Vilanova Artigas, Oscar Niemeyer, Roberto Loeb, Frank Gehry, Rem Koolhaas, James Stirling, Mario Botta, Vittorio Gregotti, Álvaro Siza, Steven Holl, Zaha Hadid, Renzo Piano, Richard Meier, Daniel Libeskind, Bernard Tschumi, Peter Zumthor, Herzog & De Meuron, Tadao Ando, Rafael Moneo, Paulo Mendes da Rocha, entre outros, foram selecionados, analisados e visitados, a partir desse enfoque do estudo do sistema de circulação, movimento e percurso na arquitetura.

A metodologia adotada neste trabalho é baseada em pesquisa bibliográfica sobre o tema, levantamento de informações sobre os projetos a partir de fontes primárias, visitas, análise do projeto por meio de desenhos e imagens. O método de análise gráfica foi adotado para investigação dos projetos. Autores clássicos importantes como Geoffrey Baker, Francis Ching, Laseau e Tice, além de pesquisas mais recentes como de Antony Radford, Selen Morkoç, Amit Srivastava e Kenneth Frampton, e de toda a vasta bibliografia sobre análise gráfica compõe referência importante. A visita tornou-se uma etapa fundamental para se compreender de maneira completa e efetiva a circulação, movimento, percurso, visuais, sensações e percepções. Como etapa da metodologia também foi estabelecido que a leitura dos textos dos próprios arquitetos é de fundamental importância para o entendimento dos conceitos que fundamentam os projetos analisados.

O sistema de circulação é composto por caminhos, corredores, passarelas, pontes, conexões, escadas, rampas, acessos, entre outros elementos. Essa investigação tem como ideia original o objetivo de analisar de modo criativo projetos selecionados a partir da abordagem no sistema de circulação como definidor e estruturador do partido arquitetônico, relacionando estratégias projetuais [1], conceito, programa e partido. Salientamos que esta pesquisa não tem enfoque específico sobre acessibilidade ou questões relacionadas às normas.

A partir das análises realizadas, pudemos verificar questões conceituais importantes no que diz respeito à circulação. Neste texto, portanto, apresentamos uma síntese dos produtos teóricos advindos da pesquisa. Trata-se dos modelos conceituais de percurso que foram identificados a partir das análises, relacionando teoria e projeto de arquitetura, de modo interpretativo. A análise de cada um dos projetos está sendo publicada individualmente de forma detalhada de acordo com critérios estabelecidos na metodologia e nas análises, configurando este material didático inicialmente pretendido pela pesquisa.

A pesquisa já envolveu e envolve alunos de Iniciação Científica, pós-graduação, disciplinas na graduação e pós-graduação, além de produzir debates, palestras, exposições e publicações para disseminação do conhecimento.

Este artigo está organizado em três partes. Primeiramente, apresentamos, de maneira sintética, considerações sobre a abordagem da circulação no projeto de arquitetura, mais especificamente dentro do foco da pesquisa, que é análise de projeto. Na segunda parte, apresentamos os modelos conceituais de percurso que foram identificados a partir da seleção dos projetos e da pesquisa em desenvolvimento. Na terceira parte, apresentamos a discussão com cada um dos modelos conceituais e exemplos de projetos analisados. E para encerrar os apontamentos finais do artigo.

  1. O sistema de circulação como estruturador na definição do partido arquitetônico

“A boa arquitetura ‘se caminha’ e ‘se percorre’ pelo interior e exterior. É a arquitetura viva.”

(Le Corbusier, 2005, p. 43)

Analisar um projeto de arquitetura, levando em consideração de que modo foi organizado o sistema de circulação, pode revelar aspectos fundamentais ao conceito, estratégias projetuais e partido arquitetônico que o arquiteto adotou. Um bom projeto deve invariavelmente ter uma circulação bem resolvida, envolvendo aproximação do edifício, acesso e percursos internos, visuais, de acordo com o conceito e partido adotado.

No entanto, em arquitetura, a circulação não se basta como um sistema apenas funcional. A articulação dos ambientes, visuais, a valorização dos elementos, a sensação, percepção e a apreciação dos espaços são questões importantes que devem ser orquestradas pelo arquiteto a partir de conceitos e condicionantes.

Os arquitetos modernos, de modo geral, operam com ao menos três noções fundamentais: espaço, tempo e movimento. No século XX, as grandes inovações arquitetônicas ocorreram no âmbito da concepção de amplos espaços integrados e fluidos, assim como da estrutura e dos novos materiais. Nesse contexto, a livre circulação pelos espaços tornou-se um dos aspectos amplamente explorados pelos arquitetos modernos.

A organização do sistema de circulação dentro de um modelo conceitual moderno de espaço prevê um ambiente amplo e desobstruído, onde o percurso faz com que o usuário tenha a compreensão do todo. O usuário domina o espaço pelo olhar num percurso livre e desobstruído visual e espacialmente. Numa abordagem diferente, dentro do conceito pós-moderno de arquitetura, o usuário descobre o espaço caminhando, com surpresas e descobertas graduais durante o percurso sequencial, quadro a quadro.  

A ideia de que os amplos espaços em arquitetura possam ser plenamente apreciados em movimento conduziu a ideia de passeio arquitetônico, ou, como denominava Le Corbusier, “promenade architecturale”. Rampas e passarelas cruzando espaços permitem exacerbar a ideia de passeio entre ambientes a partir de pontos de vista privilegiados.

A promenade architecturale implica em uma trajetória de circulação com livre disposição, axial, impelindo movimento dinâmico e assimétrico, cujo itinerário conduz a uma variedade de perspectivas e pontos de vista. No século XIX, o conceito francês de “parcours” ensinado na Ècole des Beaux-Arts, cujo significado era “trajeto de aproximação”, ou um percurso, também abordava esta ideia com foco diferente.

A noção espaço-tempo foi amplamente debatida em vários momentos da arquitetura moderna. A chamada “quarta dimensão” (Zevi, 1992), o tempo, foi plenamente introduzida na arquitetura moderna como um meio de suplantar a arquitetura clássica, considerada estática. A estrutura independente, a criação de grandes vãos possibilitada pela técnica do concreto armado, fez com que os espaços se tornassem mais abertos e fluidos, favorecendo o pleno e constante movimento livre no espaço.

No período que conhecemos como Arquitetura Pós-Moderna, o contextualismo foi uma denominação para aqueles arquitetos que desenvolviam projetos a partir de um estudo cuidadoso do entorno e sua história, e incorporavam essas condicionantes ao projeto. Um dos mais importantes arquitetos desse período foi James Stirling, que projetou e construiu o Staatsgalerie em Stuttgart (1977) na Alemanha. No texto “Graphic representation as reconstructive memory: Stirling’s German Museum Projects”, Gabriela Goldschmidt e Ekaterina Klevitsky analisam três projetos de Museus desenvolvidos por Stirling no mesmo período, nos quais o arquiteto adota o uso de axonométricas para estudar e representar a essência do projeto: o movimento e a circulação. O movimento e a circulação são prerrogativas do projeto contextualista de Stirling, que considera o edifício como parte integrante do tecido urbano, e a circulação a essência desse edifício. O arquiteto cria espaços de circulação que naturalmente integram ambientes internos e externos do edifício com a cidade.

Na contemporaneidade, Rem Koolhaas é o arquiteto que muito expressa interesse e indagações pelo tema da circulação em seus escritos e em seus projetos. O elevador, que fragmenta e interfere na percepção e relação dos espaços, e a escada rolante, que conduz a um movimento contínuo e lento pelo espaço, são elementos de investigação conceitual para o arquiteto, que de certa maneira tem relação com a vida e cidade contemporânea (Koolhaas, 1999; 2010). 

  1. Modelos conceituais de percurso e circulação

A partir do desenvolvimento da pesquisa consideramos adotar “Modelos conceituais de percurso” para denominar determinadas estratégias projetuais em circulação, que envolve três termos que consideramos tão importantes na análise aqui proposta.

Um modelo é algo que serve de exemplo a ser seguido, mimetizado ou imitado. Para Quatremère de Quincy (1832): “O modelo, como entendido na execução prática da arte, é um objeto que deve ser repetido como ele é; (...) Tudo é preciso e conhecido no modelo”.

Conceito é algo abstrato, porém é concretizado por meio da arquitetura. Segundo Tim McGinty (Snyder; Catanese, 1979), “Conceitos são ideias que integram vários elementos num todo. Estes elementos podem ser ideias, noções, pensamentos, e observações. (...) Conceitos são parte importante do projeto de arquitetura”.

Percurso é a ação de se movimentar, caminho a se fazer entre um ponto e outro, distantes entre si. Em um espaço, o percurso se faz necessário para se deslocar de um ambiente para outro, e desempenhar assim as atividades necessárias. A circulação e o percurso, dentro de um projeto de arquitetura, não é um item a ser analisado apenas de modo funcional e objetivo, mas também subjetivo, pois envolvem questões das mais variadas.

Dentre as inúmeras inovações que se pode atribuir ao período da Arquitetura Moderna, o conceito de percurso é fundamental para a interpretação dos significados dos espaços e suas conexões. Há diferentes abordagens sobre o tema, como, por exemplo, na composição clássica do ensino da Beaux-Arts, no período Moderno, no contexto pós-Moderno e Contemporâneo da Arquitetura, na cultura oriental e no Jardim Japonês.

Para Francis Ching (2015) a circulação é parte de um sistema arquitetônico. Um sistema que envolve espaço, estrutura, ambientes internos e externos, movimento no espaço-tempo, tecnologia, programa e um contexto. O movimento no espaço-tempo, para Ching, acontece em quatro etapas principais: aproximação e entrada; configuração do caminho e acesso; sequência de espaços; luz, vistas, tato, audição e olfato (percepção).

A aproximação pode ser frontal, pela diagonal ou em espiral. A entrada pode ser marcada de diferentes maneiras com a articulação de elementos de arquitetura. Rampas, quando presentes, introduzem uma dimensão vertical no espaço, além de adicionar qualidade temporal ao ato de caminhar.

A configuração do percurso que é definido no projeto depende de diversos fatores como função, orientação, hierarquia, direcionamento, visuais, sensação, percepção, apreciação do espaço, simbolismo entre outros. Obviamente cada arquiteto interpreta o programa de acordo com seu repertório e cada projeto de arquitetura tem seu partido definido a partir de cada olhar.

Assim, a partir da seleção de projetos e da pesquisa realizada até o momento, pudemos identificar que há ao menos quatro modelos conceituais de percurso em arquitetura, que de maneira sintética e interpretativa pontuamos abaixo:

Tão importante como a configuração do sistema de circulação e a adoção, mesmo que intuitiva, de um dos modelos conceituais de percurso, a definição dos acessos também é uma questão importante no projeto. O acesso pode ter um caráter evidente e óbvio como na composição clássica ou discreto e não óbvio como na abordagem da arquitetura moderna e contemporânea. O desenho e configuração dos elementos de circulação são de grande importância nessa análise.

  1. Discussão

A mudança de percepção introduzida pela arquitetura moderna levou a repensar a percepção de tempo. Como bem afirmou Jacques Lucan (2012, p. 383), ao contrário das formas fechadas da arquitetura clássica, a arquitetura moderna trouxe formas abertas, criando condições para uma arquitetura mais fluida, flexível e adaptável às constantes mudanças.

Apresentamos a seguir uma síntese dos modelos conceituais de percurso que foram identificados a partir das análises, relacionando teoria e projeto de arquitetura.

Modelo conceitual de percurso e circulação clássica Beaux-Arts: Marche e Parcours.

O método de ensino e prática da arquitetura da Beaux-Arts é um tema conhecido e estudado por importantes pesquisadores como Jacques Lucan, Alfonso C. Martinez e Edson Mahfuz, apenas para citar alguns. O movimento pelo edifício que faz o usuário perceber a enfilade, ou sequência e organização dos ambientes, geralmente compartimentados.

O método de ensino da École de Beaux Arts de Paris do século XIX trabalhava com regras de composição e ordem clássica. A distribuição, disposição, parti, l’esquisse, parcours, marche e outros ensinamentos faziam parte desse método de projeto. A circulação pelos espaços era um dos itens fundamentais desses ensinamentos, a partir de uma organização geométrica baseada em elementos, eixos e simetria. A composição de partes num todo dependia de hierarquias e do esquema da circulação. A ideia de organizar a circulação do edifício por “espaços servidos” e “espaços servidores”, presente no ensino clássico, foi revisitada mais tarde pelo arquiteto Louis Kahn (Martinez, 2000).

Um modelo conceitual de movimento pelo espaço fundamentado nos princípios clássicos da composição e ordem. Esse modelo conceitual está intimamente ligado às possibilidades construtivas do período, com construções que previam paredes portantes e espaços muito mais compartimentados, sem a fluidez existente na arquitetura moderna.

Nos edifícios pertencentes ao período e à linguagem neoclássica, especialmente no século XIX, podemos verificar esse modelo conceitual de percurso. Abaixo o desenho esquemático da planta do edifício que abriga a Pinacoteca do Estado de São Paulo (Figura 1), projeto do escritório de Ramos de Azevedo e Domiciano Rossi (1900).


Figura 1: Planta esquemática do pavimento superior do edifício que abriga a Pinacoteca do Estado de São Paulo. Fonte: Redesenho do autor, 2017.

Na década de 1990, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha realizou intervenção no edifício histórico, justamente no sistema de circulação, apresentando mais fluidez e movimento aos ambientes internos.

Modelo conceitual de percurso e circulação na Arquitetura Moderna.

Arquitetura Moderna é tema investigado por diversos pesquisadores como Leonardo Benevolo, Bruno Zevi, Kenneth Frampton, Vincent Scully, apenas para citar alguns clássicos. A ideia de percurso, movimento e circulação como estruturador de espaços e formas é uma característica tipicamente moderna. A temporalização do espaço e a continuidade visual e espacial são promovidas especialmente pelas condicionantes desse período. Busca-se apreciar o espaço como um todo, num sistema de circulação presente num espaço amplo, fluido e desobstruído.

Vincent Scully (2002) observa em seu livro Arquitetura Moderna que a continuidade, tanto espacial quanto visual, é característica importante da Arquitetura Moderna. Bruno Zevi (1984) em A linguagem Moderna da Arquitetura classifica sete invariáveis da Arquitetura Moderna, sendo que duas delas são: a continuidade espacial e visual e a importância do percurso para leitura e apreciação dos espaços e formas, ou seja, temporalizar a arquitetura, a conhecida “a quarta dimensão” do espaço, definido por Zevi.

Alguns exemplares analisados pela pesquisa revelam esse modelo conceitual de percurso. O Museu Guggenheim de Nova York (Figura 2) tem o programa distribuído em cinco pavimentos interligados por uma rampa em espiral, configurando um átrio central iluminado por uma claraboia. O edifício que abriga a FAUUSP (Figura 3) tem o programa organizado em meios-níveis interligados por rampas retas, e configuração de um átrio central iluminado por zenitais. E o edifício do Carpenter Center (Figura 4), que abriga a Escola de Artes Visuais de Harvard, tem uma rampa que cruza o edifício, organizando o programa em duas alas em simetria invertida, oferecendo ao usuário, ou ao transeunte que cruza a quadra, uma visão das atividades que acontecem nos espaços e ambientes da escola. A continuidade espacial e visual é concretizada nesses partidos arquitetônicos, de modos diferentes, estruturados pelos respectivos sistemas de circulação.


Figura 2: Fotos do edifício que abriga o Museu Guggenheim de Nova York, arquiteto Frank Lloyd Wright, 1943-1959. Fonte: autor, 2009.


Figura 3: Fotos do edifício que abriga a FAUUSP, São Paulo, arquitetos Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi, 1962. Fonte: autor, 2017.

 


Figura 4: Foto do edifício que abriga o Carpenter Center for the Visual Arts, Harvard University, Boston. Arquiteto Le Corbusier, 1959-62. Fonte: autor, 2009.

 

A experiência arquitetônica ocorre quando nos deslocamos no espaço durante o tempo. A apreciação temporal é fundamental para compreender a ideia e o efeito espacial daquilo que foi proposto pelo arquiteto. Como afirmou Philip Johnson (1965),

A arquitetura certamente não é o desenho do espaço, certamente não o agrupamento ou a organização de volumes. Estes são auxiliares ao ponto principal que é a organização da procissão. Arquitetura existe apenas no tempo (JOHNSON, 1965, p. 184). Tradução da autora.

Architecture is surely not the design of space, certainly not the massing or organizing of volumes. These are auxiliary to the main point which is the organization of procession. Architecture exists only in time (JOHNSON, 1965, p. 184)

A “procissão” a que Johnson se refere é a trajetória preparada pelo arquiteto para desfrutar a espacialidade pretendida para o projeto. A sequência temporal de aproximação ao edifício, o acesso frontal ou diagonal, a penetração aos seus espaços interiores, as perspectivas e múltiplas vistas possíveis a cada momento durante o percurso, as relações entre “cheios e vazios”, corroboram a ideia de um rito de apreciação da beleza do edifício enquanto nos movemos por seu interior.

A partir de exemplos modernos, veja a Seagram Plaza de Mies: o visitante cruza normalmente na diagonal [...] Então ele penetra apenas vidro, atenuando um pouco, para enfrentar os três corredores de elevador. Mas que corredores! […] Onde mais em uma entrada de um arranha-céu moderno é o teto de vinte e quatro metros de altura, ou onde mais os lobbies dos elevadores estão em uma linha direta da rua? (JOHNSON, 1965, p. 184) Tradução da autora.

From modern examples take Mies’ Seagram Plaza: the visitor crosses usually diagonally […] Then he penetrates only glass, slowing slightly, to be faced with the three elevator corridors. But what corridors! […] Where else in a modern skyscraper entry is the ceiling twenty-four feet high, or where else are the elevator lobbies in a direct line from the street? (JOHNSON, 1965, p. 184)

 

Nesta frase pode-se notar com nitidez a importância e contribuição de cada elemento arquitetônico para a correta apreciação do espaço pretendida para o projeto. A direção de deslocamento pelo espaço, os materiais empregados, as relações de altura e proporção, a conexão entre ambientes internos e externos, no seu conjunto, define a experiência espacial-temporal desejada para a arquitetura. Como afirmou Philip Johnson (1965, p. 184), “a beleza consiste em como nos movemos dentro do espaço”.

Muito melhor a esse respeito é o Guggenheim [...] A experiência de entrada processional é diferente da de Mies. É novamente diagonal, mas o salto para o corredor de cem metros de altura é exatamente o tipo oposto de sentimento da grande entrada axial para a Seagram. O visitante vem através de uma pequena porta (muito pequena, alguns sentem) e é pulverizado para dentro do quarto. De tirar o fôlego é. (JOHNSON, 1965, p. 184). Tradução da autora.

Much better in that regard is Guggenheim [...] The processional entrance experience is different from Mies’. It is again diagonal, but the jump into the hundred-foot high hall is exactly the opposite kind of feeling from the grand axial entry to Seagram’s. The visitor comes through a tiny door (too tiny, some feel) and is sprayed into the room. Breathtaking it is (JOHNSON, 1965, p. 184).

Modelo conceitual de percurso e circulação no período da Pós-modernidade

Autores importantes como Charles Jencks, Robert Venturi e Paolo Portoguesi, apenas para citar alguns, abraçam como tema de suas pesquisas a Arquitetura no período pós-moderno. Os espaços e ambientes são descobertos de maneira a criar surpresas, quadro a quadro, estimulando curiosidade e percepções. A preocupação no que diz respeito a estabelecer a relação com o tecido urbano e entorno é evidente.

O espaço fluido, contínuo e sem obstrução pode ser uma importante característica da arquitetura moderna, com circulação livre e domínio visual do todo. No período posterior, verificamos outras maneiras de organizar a circulação e o movimento pelos espaços. Dentro de um conceito da pós-modernidade, sugerindo descobertas graduais dos ambientes, além de visuais e surpresas.

O planejamento do edifício é “costurado” com o desenho da cidade de maneira cuidadosa, como é o caso do novo edifício da Staatsgalerie (Figura 5), projetado pelo arquiteto James Stirling, que estabelece uma conexão entre ruas em cotas diferentes, passando pelo centro da quadra, no coração do museu. O espaço interno do museu tem organização clássica das galerias de exposição. O destaque do percurso ocorre na organização da circulação e a costura do edifício com o entorno, com surpresas e descobertas graduais.

No caso do Espaço Natura (Figura 6) de Roberto Loeb também observamos um modelo sequencial, de descobertas e surpresas, tantos nos ambientes internos quanto externos. Trata-se de um programa de edifício industrial e administrativo.

Houve uma evolução entre o desenho inicial e o construído. (...) O tratamento dos espaços, com uma sucessão de surpresas, é completamente contrário à visão renascentista e, consequentemente, da arquitetura moderna brasileira, em que tudo se descortina de um ponto de vista. O desenho da Natura se desdobra em vários momentos, com surpresa. (Roberto Loeb, Revista Monolito n.25, 2015, p.22)

E o edifício do Museu Ara Pacis (Figura 7) de Richard Meier, que em sua delicadeza de escala e proporção, é inserido no contexto urbano e histórico de Roma, interligando níveis, espaços e ruas, de modo a criar surpresas e sequências, quadro e quadro.


Figura 5: Fotos do edifício novo da Staatsgalerie, Stuttgart, arquiteto James Stirling, 1984. Fonte: autor, 2018.

 

 


Figura 6: Fotos do Espaço Natura, Cajamar, arquiteto Roberto Loeb, 1996-2001. Fonte: autor, 2017.

 


Figura 7: Fotos do Museu Ara Pacis, Roma, arquiteto Richard Meier, 1995-2006. autor, 2013.

 

Modelos conceituais de percursos e circulação na Arquitetura Contemporânea.

A Pluralidade e Diversidade são características marcantes do período contemporâneo. A arquitetura contemporânea é tema de estudo de pesquisadores importantes como Leonardo Benevolo, Josep Maria Montaner, Jan Cejka e Antoine Picon, dentre outros.

A partir das análises, identificamos uma combinação entre conceitos Modernos e Pós-Modernos na abordagem da questão da circulação, unindo a fluidez e domínio do espaço da promenade com as descobertas quadro a quadro do período da pós-modernidade.

Na arquitetura contemporânea, arquitetos abordam a questão do movimento no espaço de maneiras diferentes. Como observou Wilson Florio no texto “Richard Serra e Frank Gehry no espaço público da cidade” (2010), na arquitetura de Frank Gehry os espaços são descobertos enquanto o usuário caminha, gerando surpresas e visuais interessantes, no sentido de provocar a sensação e a percepção das pessoas, como nas esculturas públicas de Richard Serra.

Rem Koolhaas é o arquiteto que revela grande interesse no que diz respeito aos elementos de circulação e às metáforas que o sistema de circulação pode promover no projeto de arquitetura, com vários textos publicados, além de manifestos concretos em sua arquitetura (Figura 8). Ao analisar o sistema de circulação e seus elementos em cada um de seus projetos podemos identificar informações importantes relacionadas ao conceito e partido, além de questões simbólicas que cada elemento carrega. A cultura da congestão, a fragmentação dos espaços da cidade grande, e outras questões do mundo contemporâneo estão presentes no discurso teórico e prático de Koolhaas, em seus textos e projetos.

Ao analisar espaços expositivos, como o Museu MAXXI (Figura 9) em Roma e o Museu Judaico em Berlim, entendemos que o sistema de circulação é a essência do espaço. Cada um de seus arquitetos solucionou o problema do programa de maneira diferente, a partir de conceitos e pressupostos próprios. Zaha Hadid explorou no espaço do MAXXI a ideia de continuidade da forma e espaço de maneira plástica, com o auxílio dos elementos de circulação nessa concretização. Daniel Libeskind organizou o programa do museu por eixos e criou percursos que simbolizam conhecimentos e metáforas inerentes aos ensinamentos do Museu Judaico (Figura 10) de Berlim. Os percursos criados, assim como os elementos de circulação são tão importantes que configuram o partido do projeto.


Figura 8: Fotos da Casa da Música, Porto, arquiteto Rem Koolhaas, 2005. Fonte: autor, 2015.


Figura 9: Fotos Museu MAXXI, Roma, arquiteta Zaha Hadid, 2009-2010. Fonte: autor, 2013.


Figura 10: Fotos Museu Judaico, Berlim, arquiteto Daniel Libeskind, 1999. Fonte: autor, 2008.

Apontamentos Finais

Este texto oferece uma síntese teórica da pesquisa que analisou de modo interpretativo projetos de arquitetura a partir da abordagem original com foco no sistema de circulação como estruturador do partido arquitetônico.

A partir do desenvolvimento da pesquisa, que envolveu análises dos projetos selecionados, identificamos modelos conceituais de percurso, que foram apresentados neste texto. A ideia de percurso, movimento e circulação como gerador de espaços e formas é algo importante e estruturante no projeto de arquitetura.

Estudando a história da arquitetura, verificamos períodos e pensamentos de uma época, que relacionam questões objetivas e subjetivas, como materiais e técnicas construtivas, metáforas e simbolismos, conceitos e funcionalidade. No período moderno, o movimento pelo espaço contínuo, fluido e desobstruído tornou-se um ato de grande protagonismo, explorado pelos arquitetos no planejamento dos ambientes, com conotações objetivas e simbólicas. No período posterior houve a pesquisa de um espaço a ser descoberto ao caminhar, quadro a quadro, deixando de lado, assim, a ideia moderna de que o ambiente pode ser todo compreendido num só olhar, considerado por alguns a banalização do espaço, por revelar tudo.

Podemos estabelecer uma relação do conceito do percurso com a ideia do Jardim Japonês, que tem em sua essência o conceito do percurso como um aprendizado e motivo de conhecimento oferecido por experiências, visuais e eventos no seu decorrer, como numa metáfora da vida. Princípios de percepção espacial e visual, simplicidade, harmonia com o local permeiam os espaços. O importante não é apenas o visto, mas sim, o imaginado (Kaloustian, 2010). O Jardim Japonês é conhecido, entre outras características, por criar nas pessoas que percorrem e apreciam, diferentes sensações. Os espaços interferem na percepção de cada indivíduo, como numa reflexão sobre a própria existência no mundo. Nada é casual ou banal. Todos os elementos, espaços, formas, visuais, materiais e estímulos aos sentidos são cuidadosamente pensados de maneira a criar condições para o indivíduo pensar, refletir, valorizar e imaginar.

No caso dos edifícios selecionados para análise da circulação observamos que essas questões estão presentes de acordo com cada programa e funcionalidade. A arquitetura não é apenas função. Há questões subjetivas que permeiam os espaços.

Observamos que o modelo estático clássico pode ser previsível ao mesmo tempo que fragmentado e compartimentado. O modelo fluido e contínuo moderno oferece a compreensão do todo e também traz certa previsibilidade, de maneira diferente. O modelo sequencial pós-moderno resgata a descoberta gradual do modelo clássico, mas com novo formato. E o modelo heterogêneo contemporâneo reúne características de todos os outros com a linguagem de cada autor.

Os quatro modelos conceituais de percurso identificados e aqui apresentados não se encerram neles mesmos. Cada qual oferece interpretações que podem aprofundar ainda mais o estudo sobre circulação e percurso em arquitetura.

Referências

CHING, Francis D. K. Architecture. Form, Space and Order. Fourth Edition. New York: Wiley, 2015.

CORBUSIER, Le. Mensagem aos estudantes de arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

FLORIO, Wilson. Richard Serra e Frank Gehry no espaço público da cidade. VI EHA,VI Encontro de História da Arte IFCH Unicamp, Campinas, 2010.

GOLDSCHMIDT, Gabriela; KLEVITSKY, Ekaterina. Graphic Representation as Reconstructive Memory: Stirling’s German Museum Projects. In: GOLDSCHMIDT, Gabriela; PORTER, William L. Design Representation. London: Springer-verlag, 2004. p. 37-61.

JOHNSON, Philip. Whence & Whither: The Processional Element in Architecture. Perspecta, v. 9/10, p.184-186, 1965.

LUCAN, Jacques. Composition, Non-Composition: Architecture and Theory in the Nineteenth and Twentieth Centuries. Lausanne, Oxford: EPFL Press/Routledge, 2012. 601p.

KALOUSTIAN, Sarkis Sergio. Jardim Japonês. A magia dos jardins de Kyoto. São Paulo: Editora K, 2010.

KOOLHAAS, Rem. Rem Koolhaas. Barcelona: Quadernas d’Architectura i Urbanisme, 1990.

_______________. Tres textos sobre a cidade. Barcelona: Gustavo Gilli, 2010.

MARTINEZ, Alfonso Corona. Ensaio sobre o projeto. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000.

MONEO, Rafael. Theoretical Anxiety and design strategies. In the work of eight contemporary architects. Cambridge: The MIT Press, 2004.

Revista Monolito. LoebCapote. Edição 25, 2015.

SCULLY, Vincent. Arquitetura Moderna. A arquitetura da democracia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

SNYDER, James; CATANESE, Anthony. Introduction to architecture. New York: McGrawHill, 1979.

ZEVI, Bruno. A Linguagem Moderna da Arquitetura. Lisboa: Publicações Dom Quixote. 1984.

ZEVI, Bruno. Saber ver a arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1992.  

1 Adotamos a definição do termo “estratégias projetuais” de Rafael Moneo (2004, p.2): (...) strategies. Here this refers to the mechanisms, procedures, paradigms, and formal devices that recur, in the work, of architects – the tools which they give shape to their constructions”.

 

Profª Dra. Ana TagliariEste endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

Docente e Pesquisadora da FEC e PPGATC Unicamp, Curso de Arquitetura e Urbanismo, Engenharia Civil e Programa de Pós-Graduação Arquitetura, Tecnologia e Cidade.

Arquiteta (FAU Mackenzie), Mestre (IA Unicamp) e Doutora em Arquitetura, área de concentração Projeto de Arquitetura (FAUUSP, 2012).

Líder do Grupo de Pesquisa “Arquitetura: Projeto, representação e análise” (Unicamp/CNPq) que desenvolve investigações nos temas: Projeto de Arquitetura, Teoria e Projeto de Arquitetura, Análise de projeto em arquitetura, Projetos não construídos, Análise de projeto com foco no sistema e elementos de circulação, Elementos da arquitetura, Análise por desenhos (análise gráfica), diagramas, modelos e maquetes, Composição em arquitetura, entre outros.

 

 

 

Acessos: 13137