Arquitetura da Escola Paulista Brutalista 1953-1973

Categoria: Ciências sociais aplicadas: Arquitetura

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*[Trecho extraído da tese de doutoramento “Arquitetura da Escola Paulista Brutalista 1953-1973”, capítulo 7.4.1. “Residências: a moradia como laboratório experimental”, p.237-242, de autoria de Ruth Verde Zein]

Seria possível selecionar e analisar, do período em estudo, uma grande quantidade de casas que desenvolveram possibilidades arquitetônicas afins às características do brutalismo paulista, nos termos em que é definido nesta tese; cada uma tendo seu interesse particular e muitas podendo ser consideradas de alta qualidade. Entretanto, num trabalho de cunho panorâmico cujo foco não é exclusivamente o tema residencial, o reconhecimento de algumas obras residenciais exemplares (que chegam a quase uma centena no cômputo total do trabalho) pode ser suficiente para compreender melhor, no que tange ao tema, essas características – não apenas comprovando-as, mas igualmente problematizando-as. Para isso a seleção de obras deve contemplar algumas estratégias. Vale serem incluídos, prioritariamente, os casos típicos, que conformam modos e padrões reconhecíveis, cujo exemplo sintetiza ou ajuda a multiplicar determinados modus operandi. E vale também serem incluídos os casos limítrofes, que justamente ajudam a definir com mais clareza as bordas do conjunto, aquilo que lhe dá coesão em contraponto àquilo que já não mais lhe pertence. Evidentemente, não se trata em absoluto de atingir uma definição exata e inquestionável dessa delimitação – que nem é possível, nem se pretende como meta nesta tese; mas, apenas, dar uma maior precisão desses limites. O que se almeja não é, entretanto, excluir, consolidar suportar possíveis ortodoxias, mas incluir, pondo-as em questão; e, ao por à prova os limites, talvez, flexibilizá-los [1].

Uma das mais fortes características do brutalismo em geral e do brutalismo paulista em particular, nos anos 1950-70, é sem dúvida a priorização da definição da estrutura portante na explicação arquitetônica da obra, de preferência pensada e executada em concreto armado, se possível protendido, optando por deixá-la aparente, e mais ainda, por dar-lhe certo destaque, eventualmente certo exagero. Quase sempre ela vem combinada com a opção, que permeia quase toda arquitetura moderna, pela planaridade das lajes, apoiadas em colunas delgadas e isoladas, recusando o papel portante dos muros; embora a preferência, no brutalismo não recaia tanto na solução Dom-ino clássica (de vãos relativamente discretos, repetitivos, homogêneos, com colunas afastadas para dentro dos bordos das lajes) mas por variações de tendência talvez miesiana, onde se passa a restringir o número de pilares, deslocando-os para os bordos das lajes, privilegiando a estrutura em uma das direções de maneira a conformar pórticos, aumentando conseqüentemente o porte, massa e peso da estrutura de vigas e pilares, cuja maior robustez permite maiores vãos e desenhos variados das colunas, seja modificando a secção ao longo do fuste, ou por facetamentos, dobras e inflexões.

Sendo essa a solução mais comum e preferentemente adotada, entretanto ela não conforma regra exclusiva, nem invalida a priori que outras soluções sejam acionadas: seja retornando a um ritmo colunar mais repetitivo e tranqüilo; seja conformando grelhas bidirecionais, horizontais e/ou verticais; seja trabalhando com muros portantes. Estes, especialmente, tanto podem resultar do agrandamento das vigas – que em alguns casos chegam a ter a altura de um pé-direito, podendo assim vencer vãos de maior porte – como podem configurar fitas contínuas delimitadoras de recintos e dando apoio a lajes, como no caso das casas-praça; como podem inclinar-se e encurvar-se configurando cascas, abóbadas ou pregueados, regulares ou irregulares, onde já não está mais clara a distinção entre estrutura portante e fechamentos, entre parede lateral e cobertura superior. Todas essas soluções podem comparecer em estado puro ou combinadas entre si numa determinada obra; e todas podem ser empregadas, se o desejarem, para conformar a arquitetura prioritariamente pela definição de sua estrutura portante – tanto no resultado plástico objetual e exterior, como na definição do espaço arquitetônico habitável interior.

Embora sempre com menos freqüência, o emprego de muros e cascas, regulares ou irregulares, de concreto armado não é exclusivo da arquitetura brutalista, mas ocorre em vários momentos e lugares da arquitetura moderna ao longo do século XX: dos hangares de Eugène Freyssinet em Orly, Paris (1921) à Igreja da Pampulha de Oscar Niemeyer em Belo Horizonte (1944); nos variados experimentos expressionistas, desde a casa do arquiteto, de Wassili Luckhardt (1920) [2] ao segundo Goetheanum em Dornach, Suíça, de Rudolf Steiner (1924-8) [3] ;não sendo estranho a algumas formulações de arquitetos finlandeses da década de 1960, como no Centro de Conferências em Otaniemi, de Reima Pietila (1966), ou nas obras de Hans Scharoun desse mesmo momento, como a Filarmônica de Berlim (1956-63). São geralmente exceções, mas nem por serem casos atípicos deixam de ser entendidas como evidentemente pertencentes à modernidade arquitetônica. Trata-se mais de um problema da historiografia arquitetônica saber encaixá-las adequadamente nos esquemas mais ou menos rígidos que vai adotando, do que um problema de validez conceitual do projeto arquitetônico para os autores que as adotam, seja oportunamente, por necessidade programático-funcional, seja costumeiramente, por preferência plástico-formal; enquanto ideologicamente, podem ser signo de atitude inconformista ou podem ser também, ou apenas, signo de busca experimental, artística e/ou tecnológica.

Também essas variantes ocorrem no brutalismo, e inclusive no brutalismo paulista – e seria de se esperar que, valorizando soberanamente o experimentalismo estrutural, isso se desse. Como já foi dito, o problema não é que ocorram, mas como a crítica e a historiografia escolherão lidar com elas, considerá-las ou não, encaixá-las ou ignorá-las.

Para os discursos e preceitos orais vigentes na época auge do brutalismo, tais buscas poderiam ser toleradas com certa facilidade enquanto fossem geometricamente regulares e/ou fossem empregadas como recurso acionado para vencer grandes vãos – como ocorre, por exemplo, no auditório de convenções do Parque Anhembi, de Miguel Juliano e Jorge Wilheim [4]. Mas, parecia ao ideário da época menos admissível quando aplicadas de maneira mais livre, sem aparente rigor geométrico, nem possibilidade de conformação de solução tendendo à tipicidade; e ademais, em programas residenciais.[5] Nas residências ocorre uma inversão conceitual interessante: não se admite a pouca importância social global dessas arquiteturas (que, sendo casas isoladas, para clientes específicos, podiam, a rigor, ser “de qualquer jeito”, com plena licença poética de criação). Ao contrário, seja por efeito de má consciência, seja por verdadeiro ânimo de bem fazer, muitos arquitetos desejavam ver na oportunidade, então, freqüente, de encomendas de casas para as classes médias ou abastadas, um ensaio de projeto para habitações “populares” – estas, sim, o “verdadeiro” problema que a arquitetura moderna, desde sempre, se havia proposto  resolver. Então, como se fosse para escolher dentre os males, o menor, havia que fazê-las prototípicas, ensaios iniciais de soluções passíveis de repetição, pois que não bastava que servissem à sua finalidade precípua, mas se almejava ampliar seu significado de maneira a lhe dar alguma relevância “social”.[6]

Em poucas palavras, esse foi o quadro que balizou a apreciação e reconhecimento de algumas obras residenciais inusuais – como, por exemplo, as  casas projetadas pelo arquiteto Eduardo Longo – mas que chega a atingir, mesmo que indiretamente, alguns aspectos das propostas de certas obras residenciais de outros arquitetos, como por exemplo, embora menos taxativamente, de Joaquim Guedes. Ambos, com mais ou menos força, são questionados por seus pares, sobre seu pertencimento à Arquitetura Paulista Brutalista por demonstrarem em suas obras uma aparente fuga da busca de tipicidade e um certo gosto pela irregularidade formal e aparente falta de rigor geométrico (mesmo que essa apreciação não fosse necessariamente correta, como se verá adiante).

Nesta tese, por outro lado, trabalha-se com um marco referencial conceitual que busca claramente distinguir entre o que possa ter sido a Escola Paulista Brutalista (como será analisado mais detidamente no próximo capítulo), do que possa ter sido a Arquitetura Paulista Brutalista; admitindo que ambas não são exatamente congruentes, e que o conjunto das obras desta última pode legitimamente ser bem mais amplo que o conjunto de obras admitidas na primeira. Assim, sob esse marco, não há a rigor nada que obste o uso de paredes e cascas portantes, formas não passíveis de repetição, pesquisas não preocupadas com a formação de soluções típicas, enquanto variantes possíveis dentro da tendência arquitetônica brutalista – sempre quando apresentem também outras de suas características, de maneira a não excluí-las totalmente; principalmente, como é o caso nas obras de Longo, quando enfatizem o emprego do concreto armado aparente, utilizado como material da estrutura portante, e que por si só praticamente define a solução arquitetônica; e ademais, estando presente um certo grau de experimentalismo, seja no sentido de busca artística e/ou no sentido de busca construtiva tecnológica.

Não foi assim que os contemporâneos de Longo entenderam seu trabalho: mesmo quando não lhe negavam nem talento, nem inventividade, lhes parecia algo inusitado, e que nada tinha a ver com a Arquitetura Paulista Brutalista, e mesmo com a arquitetura brasileira: “a obra de Eduardo Longo é totalmente desvinculada da produção arquitetônica brasileira e até mesmo de grupos que pudessem caracterizar uma arquitetura paulista” [7]. Como certas análises apressadas que em diversas ocasiões, têm sido feitas a respeito com a obra de Niemeyer, consideravam-no um “intuitivo [.] liberto de qualquer imposição teórica” [8]. Mais: consideravam que tal atitude, de inventividade aparentemente sem peias e sem limites, “pode conduzir a um caminho perigoso, por exigir um certo talento que, no decorrer do tempo, corre o risco de se exaurir, justamente por não estar vinculado a um comportamento de alguma forma racional”.[9]

Vistas as coisas de outro ângulo no tempo, e segundo outra postura metodológica, que parte da análise das obras em si mesmas, despidas das camadas de opiniões e contra-opiniões que nelas se incrustaram, devida ou indebitamente, mas que, de qualquer maneira não são parte intrínseca das mesmas (e sim, meras opiniões datadas [10]), parece mais do que legítimo estudar a contribuição dada pelas primeiras casas de Eduardo Longo (projetadas entre 1964 e 1972) à Arquitetura Paulista Brutalista, entendendo que, mesmo sendo limítrofes e questionadoras, as mesmas exibem também, de outra maneira, suas características intrínsecas. Ademais, uma análise mais cuidadosa, e operando as referências adequadas, vai facilmente perceber que sim, de um lado há rigor e geometria na concepção arquitetônica dessas obras, e de outro lado, há inserção no debate artístico seu contemporâneo; e que ambas as coisas não invalidam intuição e criação, mas ao contrário, ajudam a referenciá-las e potencializá-las.[11]

A casa que Eduardo Longo elabora ainda estudante, na Praia do Mar Casado, em Guarujá (1964) [12], tem sua publicação acompanhada de um memorial por ele escrito, bastante claro e objetivo, que em absoluto se perde em considerações de ordem político social, como era freqüente na época, [13] demonstrando uma maturidade projetual bastante desenvolvida. Longo em parte explicita, em parte deixa implícita, a maneira como o partido proposto pretende lidar, de maneira funcional sensível, com as questões programáticas e de sítio: lote de praia com vegetação esparsa mas de certo porte; vista para o mar próximo; excessiva luminosidade e calor, principalmente porque o uso se dará predominantemente nos meses de verão; facilidade de manutenção contrarrestando o eventual descuido que sofrerá nos meses de inverno; possibilidade de ventilação permanente, não só para amainar o calor do verão, como para evitar os problemas que o fechamento da casa nos meses de inverno poderia causar; grande área construída face ao programa proposto, e o desejo de não causar demasiado impacto no lugar nem atrapalhar excessivamente a vista da paisagem natural, inclusive para quem passasse na rua.

A opção por uma estrutura de custo inicial relativamente caro, mas de manutenção posterior praticamente desnecessária, e que tampouco exige maiores gastos na complementação do restante da construção, viabilizou um custo final relativamente baixo para o padrão obtido.[14] Consiste basicamente apenas em paredes inclinadas de concreto, “único material que possibilitaria uma execução plástica da forma proposta”, [15] que  conformam uma espécie de “tenda” multifacetada (embora o arquiteto a nomeie “cúpula”, termo de aplicação menos rigorosa no caso). Suas elevações podem ser volumetricamente decompostas em trapézios e triângulos, nunca verticais ou horizontais, definidos pela marcação in loco das alturas desejadas para cada ambiente, variando o pé-direito de 2.6 a 5.15 m, mesmo tendo apenas um pavimento. O concreto tem espessura genérica de 15 cm, dispensando vigas; e por não configurar em nenhum ponto lajes planas, dispensando também impermeabilizações e dispositivos para o recolhimento de águas pluviais, recebendo apenas a proteção de pintura branca a cal.

Exceto pelas grandes janelas de vidro da sala, voltadas para o leste, mas recuadas da linha externa e sombreadas por pestanas, os demais vãos de iluminação são de pequeno porte, resultando numa ambiência lumínica de penumbra, todas permitindo ventilação permanente, complementada por aberturas dispostas ao nível dos pisos, facilitando a exaustão do ar por convecção. O resultado garante uma condição de conforto interno bastante adequada, regulada para máxima qualidade nos meses de verão.

Algumas questões postas pela casa serão exploradas e desenvolvidas pelo arquiteto em suas obras posteriores, como o problema das instalações prediais. Não convindo embuti-las nas paredes, nem se optando aqui por deixá-las aparentes, a solução encontrada foi a de encaminhá-las pelos pisos, com subidas diretamente nos equipamentos e dispositivos necessários (pias, sanitários, pontos de luz e eletricidade), usando de certa inventividade na adaptação dos detalhes (como a descarga tradicional adaptada para ser acionada pelo pé).

A planta tem desenho livre e aparentemente sem rigor geométrico. Mas isso não é exatamente correto: embora não demonstre uma geometria racionalista quadrada ou por ângulos retos (mesmo quando os eixos dos pontos cardeais orientam o posicionamento dos três setores da casa, social para leste, dormitórios para o quadrante norte, serviços para sul), há certamente a busca por uma geometria de base orgânica, derivada do círculo, do hexágono e da espiral (geometrias freqüentes, por exemplo, nas obras de Wright); neste caso combinadas e tendendo ao trevo de três folhas – opção compositiva que ficará mais explícita na casa CAL em Guarujá (1968)[16], onde a idéia inicial do multifacetamento quase cristalino vai tender a uma volumetria tronco-piramidal, inclusive permitindo, pelo agrandamento das alturas, a inserção de pavimentos superiores ou mezaninos.

Longo realiza várias casas baseadas nesses princípios, embora também percorra outras possibilidades construtivas e formais, sempre com geometria de planta irregular, mas nunca desprovida de rigor geométrico, explorando temas como a forma em leque (casa Manoel Pires da Costa, São Paulo, 1970)[17], ou duplo leque em Y (casa Affonso Hennel, São Paulo, 1970, esta empregando cobertura de abóbadas à maneira Jaoul) [18]. As formas piramidais são também recorrentes em várias obras, como a citada casa CAL, as casas de praia EL (Guarujá, 1969) [19], e MG (Guarujá, 1967) [20]; idem, a combinação de plantas e volumetrias complexas; e não faltam até mesmo tentativas de configuração de casas “racionalistas”, de aparência mais regular, com base em plantas retangulares e coberturas em uma ou duas águas, como nas casas RM ou Margarida (Guarujá, 1965), e EPL (Guarujá, 1965) [21] - segundo consta, como tentativa de resposta às críticas que havia recebido sobre a irregularidade da primeira casa. Mas sua inventividade não se conforma a essa possibilidade restrita e se manifesta de muitas e variadas maneiras, sendo talvez uma das propostas mais interessantes justamente aquela desenvolvida para um lote urbano regular e de esquina, a casa OP, na rua Manoel Guedes (São Paulo, 1971) [22]. A qual, ignorando totalmente as restrições urbanísticas tradicionais, justamente se implanta sobre todos os recuos, conformando um C que a ocupa inteiramente nas bordas e deixa um pátio central vazio; volumetricamente, conforma dois volumes verticais, ao modo de torres que se miram, uma em cada extremidade do lote, conectadas por uma passarela-coberta e complementadas por uma pérgula muito cerrada do abrigo de auto.

Essa fase criativa de Eduardo Longo tem como ponto de mutação a construção da casa e escritório do arquiteto em lote com frente para as ruas Amauri e Peruíbe, em São Paulo (1971) [23]. O duplo programa, familiar/de trabalho, é resolvido pela divisão do terreno de 10 x 20 m por uma diagonal, com acessos independentes para cada uso; a volumetria é também piramidal, como se uma fatia dela fosse duplicada, rotacionada, espelhada e agregada (não faltando um cano de ventilação no ponto central, como se rótula fosse de toda essa operação), a inclinação da cobertura permitindo a disposição de mezaninos à maneira Citrohan. Além de a concepção geral ser inusitada, na medida em que usa elementos comuns, mas os subverte (na melhor tradição moderna), todos os detalhes são repensados desde um raciocínio de base funcional, ou seja, reorganizados pelo que poderia ser seu melhor funcionamento e não pelos usos e costumes; de preferência através da incorporação de tecnologias não habitualmente empregadas na construção civil, mas correntes em outras áreas, como as advindas de detalhes usuais na indústria automobilística.

Logo após construída, essa casa será objeto de uma série de experimentos de “desconstrução”: deixando a vegetação penetrar, alterando as cores, executando pinturas murais, eliminando móveis e “supérfluos”, em intervenções se aproximando cada vez mais do happening catártico, seguidas de uma irônica “volta à ordem” caracterizada pelo uso intensivo e homogêneo, e obviamente irônico, de pintura de cor verde-oliva militar; seguindo-se uma fase de desconstrução “urbana”, com abertura do térreo para passagem pública entre as duas ruas lindeiras, ficando o escritório apenas nos mezaninos, demolição de alguns trechos e construção, acima da cobertura, do experimento da “casa-bola” [24], indicando já novos rumos conceituais. Mas que ainda dão, de certa maneira, continuidade ao debate aberto pelas censuras que sua arquitetura sofrera: em resposta à criticada ausência, em sua primeira fase, da busca de tipicidade e de possibilidade de repetição, ou de desatenção em relação ao tema da habitação popular, a casa-bola responde propondo-se não como uma solução isolada, mas como protótipo de uma solução repetível de habitação social, nem tão paradoxal assim quanto possa parecer.

Mas, para a compreensão do que possa ou não pertencer à Arquitetura Paulista Brutalista, em especial nesse período inicial dos anos 1960 até começos da década seguinte, pode ser útil examinar também casos menos limítrofes do que as experiências de Longo. Obras comparativamente muito mais tranqüilas que, vistas desde uma realidade contemporânea pluralista, parecem não levantar dúvidas quanto ao pertencimento àquela tendência, mesmo se abrigando peculiaridades próprias. Percepção essa distinta da que predominava no momento em que foram criadas: recorde-se que o ambiente cultural da época era bastante mais maniqueísta, acirrado pelas disputas políticas da guerra fria e da ditadura militar de um lado, e acossado por crises conceituais que as conseqüências menos felizes da modernidade gestavam, augurando a véspera de uma muito mais ampla crise arquitetônica, de outro lado; crises que se avizinhavam e se avolumavam provocando, em contrapartida, reações intransigentes de defesa.

Crises que envolviam também disputas sobre a questão da “identidade nacional”, com reflexos na prática arquitetônica na medida em que esta pretendia manifestar-se enquanto um de seus importantes atributos representativos, identidade essa que naquele momento já estava passando por uma profunda transformação. A qual não era então jamais admitida, restando subterrânea e emudecida por não se desejar nem se permitir que fossem questionados os maiores, os predecessores (entre os quais, a escola carioca e as realizações de Brasília); por se preferir, ao revés, insistir a todo custo numa continuidade e conformidade sem sobressaltos, e exaltar, a qualquer custo, a “unidade da arquitetura brasileira” [25]. Enfim, nesse ambiente polarizado por disputas intestinas não explícitas nem ainda explicitáveis, qualquer desvio da norma talvez não pudesse ser compreendido com a devida isenção. Mais paradoxalmente ainda, os possíveis desviantes tendiam, ao contrário, a reafirmar de alguma maneira sua suprema ortodoxia; talvez porque a ninguém agrada estar na berlinda ou na quinta coluna e, além disso, a melhor defesa parece ser, quase sempre, o ataque.

O uso do concreto armado aparente parece freqüentemente indicar, de per si, uma baliza apontando a possibilidade de estar uma determinada obra (após passar por um primeiro filtro de datação admissível) inserida na arquitetura brutalista – tanto que esta chega a ser vulgarmente denominada como “arquitetura do concretão”. Entretanto, não é tanto o material, mas a atitude como ele é empregado, que pode definir com mais clareza a afiliação ao brutalismo. Conforme já explicitado anteriormente, podem estar afinadas com o brutalismo “obras que se comprazem em trabalhar e exibir francamente paramentos portantes e alvenaria de tijolos de barro ou de blocos de concreto, o que ocorre em geral alegando-se razões econômicas, mas denotando certa vontade de crueza formal e sinceridade ética” [26] .A questão da paleta preferencial de materiais, embora seja muito importante, não é plenamente excludente, havendo, sem dúvida alguma, brutalismos não concretos. Como já foi argumentado na questão das geometrias, não são apenas aquelas estritamente cartesianas que podem ser admitidas, mas as geometrias de base orgânica não estão a priori excluídas dentre as possibilidades formais, sempre quando outras condições de configuração do “brutalismo” também estejam presentes.

NOTAS DA AUTORA:

[1]Tarefa, ao nosso ver, inversa à daquela que conformou a Escola Paulista Brutalista. A afirmação, valorização e legitimidade de uma pluralidade de tendências, visões e posturas, tanto externas à tendência brutalista, como internas a ela, é também um dos objetivos explícitos desta tese. Não se trata, em absoluto, de chegar aqui a uma definição “boa” e pronta para uso em qualquer ocasião, que separe de uma vez e para sempre quem, ou o quê de direito seja ou não pertencente à Arquitetura Paulista Brutalista; mas de mostrar como ela se caracteriza, sem tentar circunscrevê-la a ponto de secar suas fontes vitais internas e externas. Ao contrário: qualquer tendência arquitetônica não pode deixar de estar conectada com o mundo ao seu redor e com as aspirações universais, com seu tempo imediato local e com seu panorama internacional, com seu momento histórico presente e com o presente histórico, englobando toda e qualquer contribuição humana que considere pertinente.

[2] Tafuri; Dal Co, 1979, p. 110. Agradeço a preciosa colaboração da arquiteta Edite Galote R.Carranza , pesquisadora da obra de Eduardo Longo, acerca dessa citação.

[3] Pehnt, 1973, p. 146-8.

[4] Ver capítulo 7.4.5. da tese.

[5] Embora admitindo vãos apropriados para obras de porte, e talvez absolutamente desnecessários em obras residenciais. O que provavelmente indica que a interdição das formas irregulares aparentemente aleatórias não deriva nem se sustenta por opiniões de base racional, mas por opiniões de base ideológica.

[6] Note-se que essa postura se assemelha, ponto a ponto, às críticas que, por exemplo, Max Bill faz à Casa de Canoas, de Oscar Niemeyer. No seio da Arquitetura Paulista Brutalista vige, de alguma maneira, a postura puritana e normatizante proclamada por Bill e outros críticos da arquitetura carioca, em especial da obra de Niemeyer, dos anos 1940/50. O tema é tratado na tese nos capítulos 5.1 “Habitat, Lina Bo Bardi e a crítica de arquitetura não alinhada” e 5.2. “As criticas internacionais, no ambiente paulistano, à escola carioca”.

[7] Xavier, 1983, p. 131.

[8] Idem, ibidem.

[9] Idem, p. 132.

[10] Inclusive as do próprio Longo quando, sob ataque, tenta justificar-se novamente pela afirmação da intuição não teórica, ou seja, não embasada em qualquer conhecimento prévio. Talvez por não poder dizer, dadas as injunções da época, algo que mesmo hoje ainda muitos recusam dar recibo, que é o fato de que nenhuma boa arquitetura existe que não nasce da afiliação, estudo e reconhecimento dos debates culturais de seu momento, inclusive internacionais: e naquele então, dos embates, por exemplo, da contra-cultura, refletidos nas propostas mais experimentais do mundo arquitetônico, de Archigram aos metabolistas – a Longo.

[11] Citando a propósito o texto já clássico, “Ideologia Modernista no Ensino de Projeto Arquitetônico: duas proposições em conflito”, de Carlos Eduardo Dias Comas: “Mesmo aceitando que a intuição desempenha papel relevante na concepção de partido, é muito improvável que ela brote de um vazio, subitamente iluminado. Pode-se sustentar que se trata de intuição educada pela experiência e observação de soluções pregressas […]. Pode-se sustentar que se trata de intuição preparada por um conhecimento prévio específico que informa a ação arquitetônica em qualquer circunstância, ainda que o faça de modo subliminar”. Comas, 1986, p. 36.

[12] Acrópole, nº 341, jul. 1967, p. 18-21; Acrópole, nº 388, set. 1971, p. 15-17.

[13] Ver, por exemplo, os textos que acompanham a publicação da casa no Jardim das Bandeiras, de Arnaldo Martino, publicados na Acrópole, nº 333, out. 1966, p. 21 e seguintes, que tratam desde questões de política internacional (a guerra do Vietnã) a temas de ordem social e ideológica (a política habitacional brasileira), sem qualquer menção à obra propriamente dita – aliás, de grande interesse e qualidade, e merecendo maior atenção, e não apenas pela eventual afiliação política de seu autor.

[14] Visitas recentes a essas obras, conforme relatado pela arquiteta Edite Galote R.Carranza, demonstram o acerto da opção: 40 anos depois a estrutura das casas se mantém em ótimo estado de conservação, sem problemas de manutenção na estrutura de concreto, o que não se pode dizer em absoluto de outras obras da mesma época.

[15] Acrópole, nº 388, set. 1971, p. 16.

[16] Acrópole, nº 389, set. 1971, p. 10-12.

[17] Xavier, 1983, p.131.

[18] Idem, p. 132.

[19] Acrópole, nº 389, out. 1971, p. 20.

[20] Acrópole, nº 388, set. 1971, p. 25.

[21] Idem, p. 22 e p. 18, respectivamente.

[22] Acrópole, nº 389, out. 1971, p. 26.

[23] Idem, p. 21.

[24] A documentação desse processo pode ser observada nas imagens publicadas pelo arquiteto em sua página na web: <http://longoeu.sites.uol.com.br>

[25] Temas analisados mais detidamente nos Capítulos 4 a 6, na parte II, “Antecedentes”.

[26] Ver item 7.2.5.

RUTH VERDE ZEIN é arquiteta pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em 1977, especialista em Técnicas Construtivas da Arquitetura Tradicional Paulista, FAUUSP e Mestre em Teoria, História e Crítica da Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É professora de arquitetura na Universidade Mackenzie e na Universidade Anhembi Morumbi.

Veja a Tese de Ruth Verde Zein, completa, em PDF, disponível

em :    TESE RUTH VERDE ZEIN

NOTA Revista 5% arquitetura+arte

Sobre o trabalho de Eduardo Longo veja ,também: As Casas de Eduardo Longo por

Gilda Collet Bruna e Edite Galote Carranza:

http://www.arquitetonica.com/historico_revista5/longo.htm

CARRANZA, Edite Galote R. Eduardo Longo na arquitetura moderna paulista:1961-2001, dissertação de mestrado apresentada ao Instituto Presbiteriano Mackenzie para obtenção do título de Mestre, 2004.

http://www.arquitetonica.com/historico_revista5/eduardolongo.pdf

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