A consciência do Tempo

Categoria: Literatura

RICARDO CARRANZA

Hamlet – Esse camarada não tem consciência do trabalho que faz, cantando enquanto abre uma sepultura?
Horácio – O costume transforma isso em coisa natural.
Hamlet – É mesmo. A mão que não trabalha tem o tato mais sensível.
Hamlet, Ato V

A plasticidade da mente conduz a percepção. Uma hora, um minuto, um dia inteiro, são escalas variáveis de uma mesma experiência. Enquanto o amanhecer pode ser inebriante, dadas as circunstâncias, o amanhecer diário do cotidiano geralmente é resumido a uma sequência de ações esquemáticas que evaporam tão logo sejam realizadas.

O sujeito coloca-se estrategicamente afastado de suas ações porque o processo, no momento de ir ao trabalho, por exemplo, só importa se nos leva o quanto antes ao nosso objetivo.

O esvaziamento da consciência, durante as tarefas do cotidiano – banho, vestir-se, alimentar-se, sair, são uma exigência à nossa sobrevivência.

O sujeito que se encantaria com a textura de uma fatia de pão, ou com a brisa que o surpreendeu no momento de fechar a porta do apartamento, chegaria atrasado, muito provavelmente, ao trabalho, e isto seria fatal para ele. Não raro os dias ou o ano passam depressa, como ouvimos no dia-a-dia, e duram uma eternidade quando viajamos a uma cidade do interior, não porque necessariamente o tempo andasse mais devagar, mas porque o grau de atenção, as novidades, provocam a nossa percepção e temos registros mais detalhados. Um ou dois dias em um lugar novo podem significar mais que toda uma semana de tarefas desgastadas pela rotina. O maravilhar-se, o encantar-se, estão fora de nossa agenda mental de sobrevivência. Por outro lado, nossa percepção do tempo é variável, ainda que achatada pela repetição. O momento iluminado deve ocorrer, e é esperado que ele ocorra, porque sem variação, sem mudança, não há consciência, e nós, humanos, temos na consciência a nossa alma. Aldous Huxley, sob o efeito de mescalina, teve na experiência a potencialização da percepção: o vaso de flores, a cadeira do escritório, para ficarmos nesses dois exemplos, extrapolaram os limites cronológicos do evento, isto é, sua duração e importância abriram uma fenda no tempo e o ampliaram. Huxley descreve a percepção do vaso de flores como – aquilo que Adão vira no dia de sua criação – o milagre inteiro desabrochar da existência, em toda a sua nudez. E a impressão de arrebatamento diante de uma cadeira do seu cotidiano – quão miraculosa a sua tubularidade, quão sobrenatural seu suave polimento. Consumi vários minutos – ou foram vários séculos? Não apenas admirando aqueles pés de bambu, mas em verdade sendo-os… Mas o extraordinário, independente dos famosos estados alterados de consciência, ocorre no cotidiano como uma cunha inserida no tempo, o qual deverá seguir conosco quem sabe pela vida inteira. Penso que cada fração de nossa existência tem o seu valor como arcabouço indispensável à sustentação do momento luminoso.

Ricardo Carranza
Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2000, diretor do escritório de arquitetura e editora G&C Arquitectônica Ltda, editor da revista 5% Arquitetura + Arte e escritor. Publicações: Antologias de Concursos Nacionais – SCORTECCI, SESC DF; revista de literatura – CULT; sites de Poesia e Literatura – Zunái, Stéphanos, Germina, Cult - Ofi-cina Literária, Mallarmargens, O arquivo de Renato Suttana, Triplov. LIVROS: Poesia – publicados: Sexteto, Edição do Autor, SP, 2010; A Flor Empírica, Edição do autor, SP, 2011; Dramas, Editora G&C Arquitectônica Ltda., SP, 2012. Inéditos – Pastiche, 2017/2018; poesia... 2019. Contos – inéditos: A comédia dos erros, 2011/2018 – pré-selecionado no Prêmio Sesc de Literatura 2018; Anacronismos, 2015/2018; 7 Peças Cáusticas, 2018. Romance inédito: Craquelê, 2018/2019. Cadernos de Insônia (58): desde 2009. ARTIGOS publicados na revista 5% Arquitetura+Arte desde 2005.
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